São Paulo, quinta-feira, 17 de outubro de 2002

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BIOQUÍMICA

Físico da Unesp analisa proteína de ação analgésica da cascavel com Kurt Wüthrich, um dos premiados deste ano

Brasileiro estuda veneno de cobra com Nobel

SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando o físico Valmir Fadel decidiu deixar Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, para concluir seu doutorado na Suíça, não imaginava que iria trabalhar com Kurt Wüthrich no dia em que o químico suíço seria agraciado com o Nobel. Mas aconteceu, na quarta-feira da semana passada.
Fadel, 43, está lá desde março, destilando o seu veneno. Ou melhor, não o dele, mas o da cascavel. Seu trabalho de doutorado envolve a decifração da estrutura de uma das proteínas que compõem o veneno da Crotalus durissus terrificus, serpente típica do Brasil. Mas a semana passada foi só festa no laboratório de Wüthrich em Zurique, parte do Instituto Federal Suíço de Tecnologia.
"Foi um agito só, um amontoado de repórteres", relata Fadel por telefone de sua sala no instituto. "Mas eu não dei muita entrevista. Todo mundo falava alemão e eu não falo uma palavra."
A pesquisa de Fadel se beneficia da técnica que levou Wüthrich a ganhar o Nobel. Trata-se de um método capaz de ajudar a decifrar a estrutura de uma proteína a partir da detecção de como seus átomos reagem a ondas de rádio (a chamada técnica de ressonância magnética nuclear). Com a informação obtida, é possível dizer a composição exata da proteína e também seu formato.
A técnica já era velha conhecida dos químicos, mas ninguém conseguia usá-la com grandes moléculas, como as proteínas. Ninguém -até Wüthrich. "Foi por isso que ele recebeu o Oscar, digo, o Nobel", diz Fadel, em um compreensível ato falho após a intensa presença dos holofotes no laboratório, semana passada.
As proteínas são as substâncias que regem basicamente tudo o que ocorre no organismo. Descobrir a forma de uma proteína é como conseguir a chave do cofre: já que é o formato da proteína que determina a sua função, saber a estrutura é o primeiro passo para descobrir como imitar (ou evitar) um efeito específico.
A proteína que Fadel está estudando é a crotamina, um composto montado a partir de 42 aminoácidos (tijolos básicos de que são feitas as proteínas). "Supondo uma média de dez átomos para cada aminoácido, é a posição de 420 átomos que estou tentando descobrir", diz, enfatizando a dificuldade do trabalho.
Por outro lado, a recompensa pode ser alta. A crotamina tem algumas propriedades interessantes, especialmente sua ação analgésica no organismo humano. "Estima-se que seja 30 vezes mais potente que a do ópio", afirma. "É uma característica de alto interesse farmacológico."
O problema é que a crotamina não é assim tão inocente. "Ela não só tira a dor do paciente, ela mata o paciente também", conta Fadel, ao informar que a substância também age no sistema muscular, causando contração e necrose (morte) dos tecidos. "O principal objetivo da cobra é imobilizar sua vítima", afirma.

"Drug design"
Daí a importância de decifrar a estrutura da proteína. Com ela, seria possível determinar que pedaço da crotamina é responsável por qual efeito, separadamente. A seguir, os cientistas poderiam usar essa informação para criar uma droga parecida com o pedaço que se quer imitar, evitando os desagradáveis efeitos colaterais da molécula original. "É a melhor maneira de construir remédios hoje em dia, que se costuma chamar de "drug design" ", diz.
A pesquisa do brasileiro, que é do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Unesp e está na Suíça com uma bolsa da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), é um bom exemplo de como é penoso o trabalho rumo à proteômica -a ciência que quer desvendar as interações entre todas as proteínas que agem em um determinado organismo. "Para decifrar uma só já é complicado", diz Fadel. "Imagine todas elas."
O pesquisador, entretanto, não larga o osso. "Há 20 anos, se me perguntassem quanto tempo ia levar para obtermos todas as letras que codificam o genoma humano, eu provavelmente diria que isso nunca seria possível", afirma. "Hoje, estamos com esse trabalho praticamente pronto, então é difícil apostar que a proteômica é um sonho impossível. O que dá para dizer é que, com a tecnologia de hoje, ainda estamos muito longe de chegar lá."
Fadel, entretanto, não tem todo esse tempo. Sua bolsa expira em março, quando o pesquisador deve retornar à Unesp. "Pelo tipo de bolsa que eu tenho, sou obrigado a voltar ao Brasil. E quero levar de volta todo o conhecimento técnico que adquiri por aqui."
Enquanto isso, o cientista segue na corrida para concluir seu doutorado. Ele não sabe quanto tempo ainda vai precisar. "Pode ser semana que vem, pode ser em três meses. Tudo vai depender dos resultados que estou obtendo agora", diz. "Algumas proteínas não gostam de ser resolvidas."


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