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Átomos para a história
Engenheiro nuclear conta a trajetória da relação entre a energia
nuclear e a opinião pública
RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL
O engenheiro Guilherme Camargo,
56, resolveu mergulhar fundo em
uma ciência humana depois de 20 anos trabalhando no setor de energia. O
"historiador autodidata", como
ele mesmo se define, publica
agora sua primeira obra sob este título, fruto do esforço de
uma década nas horas vagas do
trabalho como assessor-técnico da diretoria da Eletronuclear.
Em "O Fogo dos Deuses"
(Editora Contraponto, 346
págs., R$ 35), Camargo se propõe a contar a história da física
atômica desde a proto-ciência
da Grécia antiga até a Guerra
Fria, incluindo o projeto do
Brasil nuclear, e o faz de modo
bastante bem fundamentado.
Como era de esperar, o livro
pode ser visto como um manifesto em defesa da energia nuclear para geração de eletricidade. Mas é uma obra honesta,
que não varre para baixo do tapete o mal que o uso militar
desta tecnologia já causou.
Em entrevista à Folha, o engenheiro que virou historiador
conta como o passado ajuda a
ver o cenário nuclear presente.
FOLHA - A energia atômica tem
péssima imagem na opinião pública
desde a bomba de Hiroshima. Vai
ser possível superar isso?
GUILHERME CAMARGO - Existe
uma campanha internacional
de descrédito da energia atômica, que começou no início da
década de 1970, justamente
quando os testes nucleares das
bombas cessaram. Alguns países continuam a fazer testes até
hoje -China e, casos recentes,
o Paquistão e a Coréia do Norte. A visão negativa que as pessoas hoje têm em um senso comum era totalmente ao contrário nas décadas de 1950 e 1960.
Profundas mudanças na forma
de pensar das pessoas aconteceram no final dos anos 1960.
Surgiu um movimento internacional de descrédito da ciência.
No caso da energia nuclear, a
questão é muito clara. Não
adianta a gente querer esconder o fato de que um país como
o Brasil, que se qualifica tecnologicamente para um programa
nuclear para fins pacíficos, está
obviamente muito mais qualificado para iniciar rapidamente
um programa nuclear para fins
militares, se houver uma decisão de consenso nacional sobre
essa questão.
FOLHA - Até que ponto é viável, na
prática, a Agência Internacional de
Energia Atômica permitir a um país
desenvolver energia nuclear para
fins pacíficos sem que essa mesma
tecnologia ganhe potencial militar?
CAMARGO - Na prática, não há
nenhuma dificuldade em fazer
essa separação. A ONU desenvolveu sistemas de salvaguarda
que foram aplicados com enorme sucesso desde a criação da
Agência Internacional de Energia Atômica na década de 1950.
No ambiente político mundial
hoje, onde existem ameaças veladas e conflitos como as duas
guerras no Iraque, onde usou-se como pretexto a suposta
existência de armamentos nucleares, os países se sentem inseguros, e portanto a proliferação e o surgimento de novos
países nuclearmente armados
se torna quase que mandatório.
Se não houver um desarmamento total e indiscriminado
por parte das potências nucleares, a tendência é que surjam
cada vez mais novos países nuclearmente armados. Isso está
numa cláusula do Tratado de
Não-Proliferação de Armas
Nucleares que tem sido ignorada nas últimas quatro décadas.
FOLHA - O sr. acha, então, que o
tratado atrapalha o uso pacífico da
energia nuclear ao mesmo tempo
em que não consegue frear o uso
militar?
CAMARGO - Sim. O tratado visa
desarmar os já desarmados e,
na realidade, se tornou um tratado de não-proliferação científica e tecnológica. Durante a
primeira Guerra do Golfo, em
1991, o Brasil foi proibido de
importar supercomputadores
sob o pretexto de que pudessem ser usados para simulação
de explosões nucleares. No ambiente beligerante em que o
mundo se encontra hoje não há
controle que impeça a Coréia
do Norte de desenvolver armas
nucleares, e outros países podem obter rapidamente esse tipo de artefato.
FOLHA - O sr. diz que a bomba é a
grande culpada por colocar a opinião pública contra a energia nuclear. Os acidentes de Three Mile Island e Chernobyl não contam?
CAMARGO - Qualquer tecnologia implica um certo risco. Estudos baseados em estatísticas
e fatos mostram que morrem
dezenas de centenas pessoas
anualmente na indústria do
carvão, que é a maior fonte de
emissão de energia elétrica no
mundo. O carvão mata milhares de pessoas todos os anos.
Three Mile Island foi um acidente com zero fatalidade. Nenhuma pessoa foi evacuada da
sua região. Nenhuma radiação
minimamente acima dos níveis
de radiação que nós chamamos
de "background" vazou para o
ambiente. As pessoas que morreram foram de susto com ataques cardíacos e outras pessoas
morreram tropeçando tentando fugir do local. No caso de
Chernobyl, estávamos em plena Guerra Fria, numa época em
que a URSS já estava entrando
em colapso -e os soviéticos
não se regiam pelas normas internacionais de segurança ditadas pela Agência Internacional
de Energia Atômica.
Acho que a opinião pública
negativa não tem a ver com os
acidentes em si. Ela segue a
tendência das notícias. Hoje, o
que eu vejo é um certo relaxamento na propagandas antinuclear de ONGs poderosas como
o Greenpeace, que têm na
questão nuclear uma ideologia.
FOLHA - O acidente de Goiânia não
teve um certo impacto?
CAMARGO - Goiânia foi um caso
à parte. E acredito que é didático. Foi um acidente radiológico
-não nuclear-, aconteceu
com um isótopo usado em radioterapia, num incidente de
circunstâncias estranhas. Ninguém pediu que a radioterapia
fosse abolida em função de
Goiânia, mas várias campanhas
aconteceram de 1987 para cá
para abolir a geração de energia
elétrica por usinas nucleares.
FOLHA - Críticos da energia nuclear
ainda alegam que ela é muito cara.
CAMARGO - No mundo inteiro a
energia nuclear é absolutamente competitiva. Hoje, entre
18% e 19% da eletricidade mundial é nuclear. Há cerca de 440
usinas, e mais de 220 estão em
nos EUA, na França e no Japão.
No Brasil nós temos hoje uma
evidência inconteste. O custo
da energia oferecida por Angra
3 -R$ 137 o megawatt/hora- é
abaixo dos preços ofertados no
último leilão de energia elétrica
promovido pelo governo.
Há muitas hidrelétricas ainda a serem construídas, mas a
maior parte desse potencial está na Amazônia. Isso implica
custos enormes de transmissão
até os grandes centros de consumo, além do custo ambiental.
Há espaço para a nucleoeletricidade, porque os grandes combustíveis que o país detém são
urânio e água. O gás natural requer a construção de dutos internacionais, o que exige uma
estabilidade internacional que
dure 50 ou 60 anos. Vemos hoje
com a Bolívia o risco que há.
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