São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2006

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Átomos para a história

Engenheiro nuclear conta a trajetória da relação entre a energia nuclear e a opinião pública

RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL

O engenheiro Guilherme Camargo, 56, resolveu mergulhar fundo em uma ciência humana depois de 20 anos trabalhando no setor de energia. O "historiador autodidata", como ele mesmo se define, publica agora sua primeira obra sob este título, fruto do esforço de uma década nas horas vagas do trabalho como assessor-técnico da diretoria da Eletronuclear.
Em "O Fogo dos Deuses" (Editora Contraponto, 346 págs., R$ 35), Camargo se propõe a contar a história da física atômica desde a proto-ciência da Grécia antiga até a Guerra Fria, incluindo o projeto do Brasil nuclear, e o faz de modo bastante bem fundamentado.
Como era de esperar, o livro pode ser visto como um manifesto em defesa da energia nuclear para geração de eletricidade. Mas é uma obra honesta, que não varre para baixo do tapete o mal que o uso militar desta tecnologia já causou.
Em entrevista à Folha, o engenheiro que virou historiador conta como o passado ajuda a ver o cenário nuclear presente.

 

FOLHA - A energia atômica tem péssima imagem na opinião pública desde a bomba de Hiroshima. Vai ser possível superar isso?
GUILHERME CAMARGO -
Existe uma campanha internacional de descrédito da energia atômica, que começou no início da década de 1970, justamente quando os testes nucleares das bombas cessaram. Alguns países continuam a fazer testes até hoje -China e, casos recentes, o Paquistão e a Coréia do Norte. A visão negativa que as pessoas hoje têm em um senso comum era totalmente ao contrário nas décadas de 1950 e 1960.
Profundas mudanças na forma de pensar das pessoas aconteceram no final dos anos 1960. Surgiu um movimento internacional de descrédito da ciência.
No caso da energia nuclear, a questão é muito clara. Não adianta a gente querer esconder o fato de que um país como o Brasil, que se qualifica tecnologicamente para um programa nuclear para fins pacíficos, está obviamente muito mais qualificado para iniciar rapidamente um programa nuclear para fins militares, se houver uma decisão de consenso nacional sobre essa questão.

FOLHA - Até que ponto é viável, na prática, a Agência Internacional de Energia Atômica permitir a um país desenvolver energia nuclear para fins pacíficos sem que essa mesma tecnologia ganhe potencial militar?
CAMARGO -
Na prática, não há nenhuma dificuldade em fazer essa separação. A ONU desenvolveu sistemas de salvaguarda que foram aplicados com enorme sucesso desde a criação da Agência Internacional de Energia Atômica na década de 1950. No ambiente político mundial hoje, onde existem ameaças veladas e conflitos como as duas guerras no Iraque, onde usou-se como pretexto a suposta existência de armamentos nucleares, os países se sentem inseguros, e portanto a proliferação e o surgimento de novos países nuclearmente armados se torna quase que mandatório. Se não houver um desarmamento total e indiscriminado por parte das potências nucleares, a tendência é que surjam cada vez mais novos países nuclearmente armados. Isso está numa cláusula do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares que tem sido ignorada nas últimas quatro décadas.

FOLHA - O sr. acha, então, que o tratado atrapalha o uso pacífico da energia nuclear ao mesmo tempo em que não consegue frear o uso militar?
CAMARGO -
Sim. O tratado visa desarmar os já desarmados e, na realidade, se tornou um tratado de não-proliferação científica e tecnológica. Durante a primeira Guerra do Golfo, em 1991, o Brasil foi proibido de importar supercomputadores sob o pretexto de que pudessem ser usados para simulação de explosões nucleares. No ambiente beligerante em que o mundo se encontra hoje não há controle que impeça a Coréia do Norte de desenvolver armas nucleares, e outros países podem obter rapidamente esse tipo de artefato.

FOLHA - O sr. diz que a bomba é a grande culpada por colocar a opinião pública contra a energia nuclear. Os acidentes de Three Mile Island e Chernobyl não contam?
CAMARGO -
Qualquer tecnologia implica um certo risco. Estudos baseados em estatísticas e fatos mostram que morrem dezenas de centenas pessoas anualmente na indústria do carvão, que é a maior fonte de emissão de energia elétrica no mundo. O carvão mata milhares de pessoas todos os anos. Three Mile Island foi um acidente com zero fatalidade. Nenhuma pessoa foi evacuada da sua região. Nenhuma radiação minimamente acima dos níveis de radiação que nós chamamos de "background" vazou para o ambiente. As pessoas que morreram foram de susto com ataques cardíacos e outras pessoas morreram tropeçando tentando fugir do local. No caso de Chernobyl, estávamos em plena Guerra Fria, numa época em que a URSS já estava entrando em colapso -e os soviéticos não se regiam pelas normas internacionais de segurança ditadas pela Agência Internacional de Energia Atômica. Acho que a opinião pública negativa não tem a ver com os acidentes em si. Ela segue a tendência das notícias. Hoje, o que eu vejo é um certo relaxamento na propagandas antinuclear de ONGs poderosas como o Greenpeace, que têm na questão nuclear uma ideologia.

FOLHA - O acidente de Goiânia não teve um certo impacto?
CAMARGO -
Goiânia foi um caso à parte. E acredito que é didático. Foi um acidente radiológico -não nuclear-, aconteceu com um isótopo usado em radioterapia, num incidente de circunstâncias estranhas. Ninguém pediu que a radioterapia fosse abolida em função de Goiânia, mas várias campanhas aconteceram de 1987 para cá para abolir a geração de energia elétrica por usinas nucleares.

FOLHA - Críticos da energia nuclear ainda alegam que ela é muito cara.
CAMARGO -
No mundo inteiro a energia nuclear é absolutamente competitiva. Hoje, entre 18% e 19% da eletricidade mundial é nuclear. Há cerca de 440 usinas, e mais de 220 estão em nos EUA, na França e no Japão. No Brasil nós temos hoje uma evidência inconteste. O custo da energia oferecida por Angra 3 -R$ 137 o megawatt/hora- é abaixo dos preços ofertados no último leilão de energia elétrica promovido pelo governo.
Há muitas hidrelétricas ainda a serem construídas, mas a maior parte desse potencial está na Amazônia. Isso implica custos enormes de transmissão até os grandes centros de consumo, além do custo ambiental. Há espaço para a nucleoeletricidade, porque os grandes combustíveis que o país detém são urânio e água. O gás natural requer a construção de dutos internacionais, o que exige uma estabilidade internacional que dure 50 ou 60 anos. Vemos hoje com a Bolívia o risco que há.


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