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+ Marcelo Leite
Pá de cal nuclear
Planalto, Eletronuclear e CNEN têm muito a aprender com JK e Collor
Nos anos 1960, era comum ver
na praia de Itaguá, em Ubatuba (SP), pessoas enterradas
até o pescoço na areia escura, quase
negra. Era tida como similar da "areia
monazítica" que supostamente produzia curas milagrosas em Guarapari
(ES). Se a virtude terapêutica é duvidosa, o mesmo não se pode dizer da
presença do elemento radioativo tório
nas areias.
Pois o tório, então exportado para
os Estados Unidos, teve papel importante na ameaça de uma CPI da Energia Atômica no Brasil, em 1955. O recém-eleito presidente da República,
Juscelino Kubitschek, adiantou-se ao
Congresso e criou uma Comissão Especial, que no ano seguinte daria origem à Comissão Nacional de Energia
Nuclear, a CNEN.
Para comemorar seu meio século, a
CNEN -subproduto da mobilização
científico-nacionalista-militar que levou à criação do CNPq- acaba de lançar o livro "A Opção Nuclear, 50 Anos
Rumo à Autonomia". Traz detalhada
reconstituição do percurso da comissão, com objetividade razoável para
uma obra institucional, e fotografias
curiosas (várias relacionadas com a
areia monazítica).
Na página 161, há uma imagem perturbadora de 1990. Com semblante
mofino, Fernando Collor de Mello está de pé ao lado de um buraco redondo, de camisa branca e gravata com
prendedor, sem paletó. Na mão direita, uma pazinha doméstica de lixo, da
qual escorre um pó branco para dentro do poço. A lata de pintor presa no
caibro que o separa do buraco não deixa dúvida: é uma pá de cal.
Ao pé de Collor estão dois Josés:
Goldemberg (então secretário de
Ciência e Tecnologia) e Lutzenberger
(secretário do Meio Ambiente). Há
também militares e personagens menores da República da Dinda. Um momento histórico: o fechamento do poço para testes nucleares secretos que o
programa nuclear paralelo planejava
conduzir na Serra do Cachimbo (PA).
De lá para cá, a grande novidade na
área nuclear foi a entrada em operação da usina termelétrica Angra 2, em
2001, após muitas idas e vindas. Ao lado da velha Angra 1, gera coisa de 2%
da eletricidade consumida no país.
Ainda não há decisão governamental
sobre construir ou não Angra 3, orçada em US$ 1,7 bilhão.
Vários têm sido os sinais de que o
governo Lula 2 pode retomar a terceira usina. O último foi a inclusão, em
estudo prospectivo da Empresa de
Pesquisa Energética (ligada ao Ministério de Minas e Energia), de outras
quatro centrais atômicas. Forneceriam 4.000 MW dos 100 mil MW adicionais de que o Brasil deve precisar
em 2030, se a economia crescer à taxa
média de 4% ao ano.
Na página 160, ao lado da foto de
Collor, o livro da CNEN menciona de
passagem que "há setores da sociedade reticentes quanto à conclusão de
Angra 3" e atribui isso ao custo bilionário e a "outras razões". Uma observação tão lacônica não faz justiça ao
vigor do movimento antinuclear, que
tantas dificuldades criou para essa indústria no passado. E prenuncia o
pior: descaso com a opinião pública.
Planalto, Eletronuclear e CNEN
têm muito a aprender com JK e Collor. Hoje a energia nuclear conta com
novos argumentos, como ser alternativa de alto rendimento a termelétricas agravadoras do efeito estufa e ao
alagamento de florestas amazônicas.
Essas razões não existiam, nem foram
necessárias, quando militares decretarem seu uso à revelia da sociedade.
Insistindo no segredo, ainda que para fins pacíficos, podem acabar lançando mais uma pá de cal sobre o
questionável sonho nacionalista de
autonomia nuclear.
MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Pantanal, Mosaico das
Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em
Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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