São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2006

Texto Anterior | Índice

+ Marcelo Leite

Pá de cal nuclear

Planalto, Eletronuclear e CNEN têm muito a aprender com JK e Collor

Nos anos 1960, era comum ver na praia de Itaguá, em Ubatuba (SP), pessoas enterradas até o pescoço na areia escura, quase negra. Era tida como similar da "areia monazítica" que supostamente produzia curas milagrosas em Guarapari (ES). Se a virtude terapêutica é duvidosa, o mesmo não se pode dizer da presença do elemento radioativo tório nas areias.
Pois o tório, então exportado para os Estados Unidos, teve papel importante na ameaça de uma CPI da Energia Atômica no Brasil, em 1955. O recém-eleito presidente da República, Juscelino Kubitschek, adiantou-se ao Congresso e criou uma Comissão Especial, que no ano seguinte daria origem à Comissão Nacional de Energia Nuclear, a CNEN.
Para comemorar seu meio século, a CNEN -subproduto da mobilização científico-nacionalista-militar que levou à criação do CNPq- acaba de lançar o livro "A Opção Nuclear, 50 Anos Rumo à Autonomia". Traz detalhada reconstituição do percurso da comissão, com objetividade razoável para uma obra institucional, e fotografias curiosas (várias relacionadas com a areia monazítica).
Na página 161, há uma imagem perturbadora de 1990. Com semblante mofino, Fernando Collor de Mello está de pé ao lado de um buraco redondo, de camisa branca e gravata com prendedor, sem paletó. Na mão direita, uma pazinha doméstica de lixo, da qual escorre um pó branco para dentro do poço. A lata de pintor presa no caibro que o separa do buraco não deixa dúvida: é uma pá de cal. Ao pé de Collor estão dois Josés: Goldemberg (então secretário de Ciência e Tecnologia) e Lutzenberger (secretário do Meio Ambiente). Há também militares e personagens menores da República da Dinda. Um momento histórico: o fechamento do poço para testes nucleares secretos que o programa nuclear paralelo planejava conduzir na Serra do Cachimbo (PA).
De lá para cá, a grande novidade na área nuclear foi a entrada em operação da usina termelétrica Angra 2, em 2001, após muitas idas e vindas. Ao lado da velha Angra 1, gera coisa de 2% da eletricidade consumida no país. Ainda não há decisão governamental sobre construir ou não Angra 3, orçada em US$ 1,7 bilhão. Vários têm sido os sinais de que o governo Lula 2 pode retomar a terceira usina. O último foi a inclusão, em estudo prospectivo da Empresa de Pesquisa Energética (ligada ao Ministério de Minas e Energia), de outras quatro centrais atômicas. Forneceriam 4.000 MW dos 100 mil MW adicionais de que o Brasil deve precisar em 2030, se a economia crescer à taxa média de 4% ao ano.
Na página 160, ao lado da foto de Collor, o livro da CNEN menciona de passagem que "há setores da sociedade reticentes quanto à conclusão de Angra 3" e atribui isso ao custo bilionário e a "outras razões". Uma observação tão lacônica não faz justiça ao vigor do movimento antinuclear, que tantas dificuldades criou para essa indústria no passado. E prenuncia o pior: descaso com a opinião pública. Planalto, Eletronuclear e CNEN têm muito a aprender com JK e Collor. Hoje a energia nuclear conta com novos argumentos, como ser alternativa de alto rendimento a termelétricas agravadoras do efeito estufa e ao alagamento de florestas amazônicas.
Essas razões não existiam, nem foram necessárias, quando militares decretarem seu uso à revelia da sociedade. Insistindo no segredo, ainda que para fins pacíficos, podem acabar lançando mais uma pá de cal sobre o questionável sonho nacionalista de autonomia nuclear.


MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


Texto Anterior: + Marcelo Gleiser: Sombra global
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.