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Micro/Macro
O espírito da coisa
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Após viagem de quase seis meses, no
último dia 4 a sonda Spirit (Espírito), da Nasa (agência espacial americana), pousou em Marte. O local do pouso
é a cratera Gusev, onde cientistas acreditam ter existido um lago. Imagino que o
leitor já tenha visto fotos enviadas pela
sonda ou esteja a par do acontecimento
por este jornal ou outros meios. Não dá
para exagerar o quanto é impressionante
esse feito tecnológico.
Quem já brincou com carrinho de controle remoto sabe que não é fácil evitar
acidentes, colisões ou interrupções na
transmissão de sinais, mesmo quando se
vai só da sala de jantar até o quarto. Imagine quando o carrinho é um foguete que
tem de pousar em um planeta ao qual
ninguém jamais foi, a uma distância de
80 milhões de quilômetros.
Recentemente, assisti a um programa
da série "Nova", de documentários científicos semanais (é, a televisão americana
encontra espaço para excelentes documentários semanais sobre ciência), do
canal público PBS (Public Broadcasting
System), que apresentava a construção
da Spirit: os inúmeros testes, os momentos angustiantes (quando toda a missão
estava para ser cancelada se uma falha
não fosse consertada em dias), os momentos de triunfo (quando os testes funcionavam), enfim, anos de trabalho envolvendo centenas de engenheiros, técnicos e cientistas que desbravavam as
fronteiras da tecnologia espacial.
Quando a câmera mostrava os cientistas trabalhando, eu via um grupo de garotos e garotas brincando com seus carrinhos de controle remoto, empinando
pipa, gritando e chorando, extasiados
com a possibilidade de dedicar suas vidas à exploração do desconhecido, misturando o lúdico com o profissional. Não
é à toa que o grande físico americano Isidore I. Rabi dizia que os cientistas são os
"Peter Pans" da sociedade.
Marte é mesmo um lugar estranho: o
céu é rosa, e o pôr-do-sol, azul. A temperatura pode variar em mais de 30C dos
pés à cabeça. Um de seus vulcões é maior
do que o Estado de São Paulo. Montanhas são mais altas do que o monte Everest. O frio é terrível e constante, e o vento, horrendo. Decididamente, Marte não
é um lugar para passar as férias. Que sejam antes enviados os robôs. Se os portugueses tivessem robôs no século 16, certamente os teriam mandado antes.
Spirit é a quarta missão a pousar em
Marte. Os ingleses, coitados, perderam
contato com o seu robô Beagle-2, que
chegou a Marte alguns dias antes da Spirit. Duas sondas Viking pousaram lá nos
anos 70, e a Pathfinder chegou em 1997.
Seu carro robotizado, Sojourner, circulou pela superfície por meses, encantando o mundo. O seu sítio na internet é o
mais visitado em toda a história. Mas nenhuma dessas missões se compara à Spirit e à sua companheira, Opportunity,
que deve pousar no próximo sábado.
Oito minutos antes da "marterrissagem", a espaçonave libera o módulo que
irá chegar ao solo. Ele deve atingir a atmosfera a um ângulo de 11,5. Um erro
de 0,2 e ele ricocheteia para o espaço ou
explode na atmosfera. Divida um círculo
em 1.800 segmentos iguais; esse é um ângulo de 0,2. O módulo entra com uma
velocidade de 20 mil km/h e tem apenas
seis minutos para chegar à velocidade zero no solo.
Um escudo aumenta a fricção (brilhando como um pequeno sol) e diminui
sua velocidade até 1.600 km/h. Um pára-quedas abre e a velocidade cai para 300
km/h. Um cabo de 30 metros é usado para baixar a sonda de dentro do módulo,
como um bebê em um cordão umbilical.
Um cinturão de bolsões de ar de três metros de altura infla em torno da sonda em
meio segundo, e retrofoguetes entram
em ignição para diminuir ainda mais a
velocidade. Imediatamente antes do
pouso, o cabo é cortado e a sonda cai,
quicando pela superfície feito uma bola
até parar. Todos esses estágios tiveram
de funcionar perfeitamente para o sucesso do pouso. E todos funcionaram.
O objetivo principal da missão é encontrar água líquida ou seus vestígios.
Por isso o pouso no suposto lago. Sem
água, a vida é impossível, ao menos nas
formas que conhecemos. Marte pode
nos surpreender. Espero que sim. Mas,
caso não seja com alguma forma de vida,
presente ou passada, será com outra coisa. E tudo isso porque alguns garotos
nunca deixaram de brincar com seus
carrinhos de controle remoto.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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