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São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 2003

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COMPORTAMENTO ANIMAL

Primata percebe que companheiro recebeu comida mais saborosa que a sua e se nega a comer

Macaco-prego recusa "pagamento" injusto

Frans de Waal/Divulgação
Macaco-prego jovem (à esq.) pede comida a indivíduo adulto


REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

O gênio dos macacos da América também parece ter senso de justiça. Foi o que descobriram cientistas ao "pagar" de forma diferente dois macacos-pregos pelo mesmo "trabalho". O primata que recebeu a paga menos valiosa se recusou a pegá-la ou a atirou para longe, no que pode ser a primeira demonstração desse tipo de sentimento entre os animais.
Obviamente, os bichos não foram submetidos a um mês de trabalho estafante no escritório: sua única tarefa consistia em trocar uma pedrinha por comida com seus instrutores. Acontece que, se eles viam que um companheiro de espécie recebia uma iguaria mais saborosa por fazer a mesma coisa, entravam em greve.
"Ninguém tinha demonstrado isso antes em outros animais, nem mesmo em chimpanzés", afirma a bióloga Sarah Brosnan, 27, da Universidade Emory, em Atlanta, nos Estados Unidos. Ao lado do primatologista holandês Frans de Waal, ela assina o estudo que sai hoje na revista científica "Nature" (www.nature.com).

Gênios da raça
Não é de hoje que a inteligência e a complexidade social dos macacos-pregos (chamados de Cebus apella pelos cientistas) anda assombrando muita gente. Eles são capazes, por exemplo, de usar ferramentas para abrir cocos em busca da valiosa polpa, e têm um cérebro tão grande em relação ao corpo quanto os grandes macacos (chimpanzés, bonobos e gorilas) que são os parentes mais próximos da humanidade.
Mas foi mesmo a vida social dos bichos que atraiu a atenção de Brosnan. "Eles cooperam muito entre si e toleram bem a presença de outros membros da espécie", explica a bióloga. Por isso, era de se esperar que os bichos evoluíssem a capacidade de detectar se alguém está levando a melhor às custas dos outros. Assim, eles impediriam que uns poucos folgados se beneficiassem da cooperação sem fazer esforço.
Foi exatamente isso o que a dupla descobriu ao testar a idéia num grupo de cinco fêmeas. "Imaginamos que a situação tenha funcionado com elas porque as fêmeas tendem a prestar muito mais atenção às interações sociais", sugere Brosnan.
Sempre em duplas, uma delas tinha de passar a pedrinha ao instrutor e recebia em troca uma rodela de pepino ou uma uva. Em geral, o pepino é considerado uma recompensa totalmente aceitável, mas bastou as fêmeas notarem que a companheira ao lado ganhava a fruta, muito mais cobiçada, para passarem a se comportar de forma muito diferente. Em alguns casos, elas simplesmente não entregavam a pedrinha ou se recusavam a pegar o pepino. Em outros, lançavam o "salário injusto" para fora da sala.
"Pode ser que isso tenha algo a ver com uma capacidade rudimentar de consciência, já que eles são capazes de reconhecer que o outro recebeu uma recompensa melhor do que a deles", pondera Brosnan, que está fazendo seu doutorado sob a orientação de Waal, um dos maiores especialista em comportamento primata do mundo. Agora, a intenção dos pesquisadores de Atlanta é realizar testes semelhantes com chimpanzés, claramente os mais inteligentes dos primatas.
"O Frans de Waal gosta de arriscar, e por isso a expressão "sense of fairness", que a gente traduziria como senso de justiça. Mas em inglês a conotação do termo é um pouco mais concreta, ligada ao preço devido de uma coisa, por exemplo, e não tem tantas implicações éticas", avalia o etologista (especialista em comportamento animal) Eduardo Ottoni, 43, do Instituto de Psicologia da USP.

Receita de sucesso
Ottoni, um dos responsáveis por desvendar o uso de ferramentas por macacos-pregos, sugere que o ambiente e a sociedade ajudaram a moldar a espantosa inteligência dos bichos, que estão separados da linhagem que deu origem ao homem há 40 milhões de anos, assim como os outros macacos da América (para efeito de comparação, chimpanzés e humanos só se "separaram" há 6 milhões ou 7 milhões de anos).
"É um animal generalista, que ocupa até ambientes nos quais não costuma haver macacos, como o cerrado e a caatinga", diz o pesquisador da USP. "Como a estrutura social dele é mais tolerante e mais plástica do que a de outros primatas, multiplicam-se as chances de os animais jovens aprenderem com os mais velhos e gerarem redes de alianças sociais." Não é à toa que já há quem apelide esses macacos de "chimpanzés do Novo Mundo".


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