São Paulo, domingo, 19 de abril de 1998

Próximo Texto | Índice

Imune a provas



Governo italiano libera uma terapia para o câncer sem eficácia comprovada
GIANCARLO SUMMA
de Roma, especial para a Folha

"Queremos liberdade de cura", dizia o cartaz que abriu uma passeata em Roma, no início de março. Milhares de pessoas -doentes de câncer, seus familiares e militantes das associações de voluntários- desfilaram do Coliseu até a Câmara dos Deputados, para pedir ao governo a liberação da terapia que supostamente combate o câncer, desenvolvida pelo médico italiano Luigi Di Bella.
Foi uma manifestação insólita até para os padrões italianos. As discussões sobre os tratamentos de doenças, em geral, não costumam sair das salas universitárias ou dos consultórios médicos. Nos últimos meses, porém, o debate sobre a chamada "multiterapia Di Bella" ("MDB") deixou de ser matéria para especialistas, tornando-se assunto "quente" na agenda política, com destaque na mídia.
Di Bella, 85, professor aposentado de fisiologia da Universidade de Modena, afirma ter desenvolvido, em 40 anos de estudos solitários em seu laboratório particular, um tratamento eficaz para a leucemia, linfomas malignos e vários tipos de câncer (de cólon, do reto, do intestino, do pâncreas, do esôfago etc.). Afirma, ainda, que o mesmo tratamento poderia ser utilizado para tratar a doença de Alzheimer e a esclerose múltipla.
O também chamado "coquetel Di Bella" é uma combinação original de medicamentos conhecidos: somatostatina (fármaco inibidor do hormônio do crescimento), melatonina (hormônio que regula os ciclos do sono no corpo humano), retinóides (substâncias semelhantes à vitamina A) e bromocriptina (fármaco usado para a doença de Parkinson).
O "coquetel" é complementado com ervas e vitaminas. Às vezes, a somatostatina é substituída por um equivalente sintético, o octreotide. As doses e a fórmula são específicas para cada paciente.
Di Bella diz que a "MDB" bloqueia a multiplicação das células tumorais sem os efeitos "destruidores" da quimioterapia ou da cirurgia. "Nunca vi ninguém sarar de verdade com a quimioterapia", disse. "Em geral, os resultados são escassos e as condições de vida dos doentes pioram muito".
Ele afirma ter acompanhado cerca de 20 mil pacientes nos últimos 25 anos e que "grande parte" deles ficou curada do câncer. Mas ele já foi mais modesto em um ensaio, no qual disse que sua terapia foi seguida por 10 mil pessoas, com alto percentual de melhora.
Di Bella nunca apresentou os estudos de casos de seus alegados êxitos, nem forneceu um estudo dos prontuários de seus pacientes, conforme a metodologia internacional. Segundo algumas estimativas, cerca de 20 mil italianos com câncer utilizam o "coquetel" como terapia principal ou auxiliar.
Em geral, Di Bella e os médicos que seguem sua terapia (cerca de 50 na Itália e mais alguns em outros países) recomendam aos pacientes que não façam quimioterapia "para não prejudicar as chances de cura". "Isso é muito perigoso", alerta o professor Franco Pannuti, presidente da Associação Nacional do Câncer. "Hoje, a quimioterapia e outras terapias experimentadas são eficazes em 60% dos casos. Depois que a mídia começou a falar de Di Bella, muitas pessoas deixaram de se tratar para ir atrás dessa tal multiterapia. Isso poderia custar-lhes a vida".
Os primeiros artigos sobre Di Bella e sua terapia saíram na imprensa na década de 70. Somente no final do ano passado, porém, o velho professor tornou-se um personagem conhecido do grande público, devido a alguns programas de televisão dedicados aos supostos "êxitos" da multiterapia.
A repercussão foi enorme. Em poucas semanas, as quatro associações que apóiam Di Bella chegaram a ter mais de 4.000 sócios. A mídia toda deu -e continua dando- grande espaço às declarações de Di Bella, que acusa o governo italiano e a classe médica de "sabotar" sua terapia para favorecer os "interesses das grandes indústrias farmacêuticas". Nessa "cruzada", Di Bella recebeu o explícito apoio político da Aliança Nacional, o partido neofascista.
A imprensa relatou, praticamente sem nenhuma verificação, casos de pacientes "salvos" por Di Bella. "A cobertura desse caso é uma página negra da nossa profissão", disse o presidente do sindicato nacional dos jornalistas, Paolo Serventi Longhi.
Em janeiro e em março de 1997, uma comissão do Ministério da Saúde tinha dado pareceres negativos ao uso do "coquetel" devido à falta de provas de sua eficácia. Mas, sob a pressão da opinião pública, o governo recuou e aceitou a experimentação, que está sendo feita com 2.600 pacientes em 86 hospitais públicos. A escolha dos nomes foi feita por sorteio: havia mais de 17 mil pedidos.
Para Di Bella e seus seguidores, isso não é suficiente. Eles pedem que o Ministério da Saúde libere imediatamente a "MDB", inserindo os componentes do "coquetel" na lista dos fármacos distribuídos, de graça ou quase, pelo Estado. A aceitação do pedido custaria pouco menos de US$ 2 milhões aos cofres públicos. Enquanto isso, o mercado negro dos fármacos que compõem o "coquetel" explodiu: para seguir a multiterapia, hoje um paciente pode chegar a gastar até US$ 5.000 por mês.
A experimentação oficial só terminará em março de 1999. Os primeiros dados conhecidos, porém, não são alentadores. Num hospital de Casarano (na região da Puglia, sul do país), de 220 doentes de câncer submetidos à multiterapia, 25% morreram e muitos tiveram de interromper o tratamento, devido aos efeitos colaterais que o uso de altas doses de somatostatina provoca. Nenhum paciente registrou melhoras expressivas.
"Nos últimos anos, o relacionamento entre médicos e pacientes entrou em colapso", diz o professor de medicina Orso Bugiani, da Universidade de Milão. "Infelizmente, para muitos médicos, os pacientes são apenas números, e não seres humanos. Assim, basta aparecer um médico com carisma pessoal, falando de esperança, para que milhões de pessoas estejam dispostas a acreditar nele".



Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.