São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2008

Texto Anterior | Índice

+Marcelo Leite

Ciência: use com cuidado


Uma pessoa inteligente já se equivocou ao interpretar este título


Desculpe o leitor o expediente, que pode soar cabotino, de usar como título desta coluna o do livro lançado há uma semana (veja no pé deste texto). Como pelo menos uma pessoa inteligente se equivocou ao interpretá-lo, impõe-se uma explicação. Não como justificativa, mas para curvar-se ao ajuste contínuo de interpretações que caracteriza e enobrece tanto o jornalismo quanto a pesquisa científica.
O que se entende como cuidado com o qual o público deve "usar" a ciência? Um exemplo ajudará a esclarecer a questão. Há uma enorme concorrência entre laboratórios espalhados pelo mundo para chegar a uma solução para o drama de pessoas que perdem o domínio de partes do corpo, como paraplégicos. São várias as estratégias perseguidas. Algumas dessas estratégias, como o desenvolvimento de uma interface cérebro-máquina, poderiam também melhorar a vida de quem perdeu um membro, não só o domínio sobre ele.
O princípio é elegante: se for possível colher sinais cerebrais capazes de acionar dispositivos robóticos (próteses, cadeiras de rodas, exoesqueletos futuristas), estaria contornada a ruptura da ligação entre cérebro e músculos motores (a ou perda dos próprios músculos) que ocasionou a deficiência. Grupos das universidades Brown e Duke, nos Estados Unidos, já avançaram nessa direção. Para alguns casos, porém, como traumas na medula espinhal, existem outras possibilidades. Uma delas, que tem chamado muita atenção, é o emprego de células-tronco embrionárias humanas para reparar o dano aos feixes de fibras nervosas contidos na medula que levam o impulso motor do sistema nervoso até os músculos.
A empresa americana Geron está para anunciar um teste clínico com seres humanos baseado nessa estratégia. Mas a terapia em questão valerá só para certos casos específicos de traumas subagudos (ocorridos há poucas semanas). Isso se der certo, e depois ainda terá de obter aprovação da FDA (agência de alimentos e fármacos dos EUA).
Omitir tais detalhes e noticiar só que células-tronco embrionárias podem "curar" traumas da medula é o tipo do desserviço que cabe ao jornalismo científico evitar. Há quase três décadas, outra estratégia vem sendo explorada. Trata-se de criar pontes de células (implantes de tecido nervoso) no local do trauma da medula, que possam servir de guias para regenerar fibras seccionadas. Uma equipe da Universidade do Colorado (EUA) fez progressos recentes com células chamadas astrócitos, mas de um tipo específico.
Nesta semana, o periódico científico "Nature" trouxe pesquisa de grande repercussão sobre uma quarta estratégia: usar interfaces cérebro-máquina para levar impulsos não a dispositivos robóticos, mas diretamente aos músculos que se quer ativar. O trabalho, da Universidade de Washington (noroeste dos EUA), representa só uma prova de princípio, pois foi feito com macacos, em um único músculo. Demandaria anos ou décadas de refinamento para resultar em aplicações práticas para humanos. Não parece possível dizer, no estágio atual, qual dessas quatro estratégias (ou outras não mencionadas aqui) será a mais bem-sucedida. Uma poderá revelar-se mais eficaz para certos casos, outra para outros.
O jornalista de ciência que induzir conclusão diversa estará traindo a confiança que lhe deposita o leitor, ao sonegar os avisos de cautela imprescindíveis para fazer bom uso da informação científica.


MARCELO LEITE é autor de "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007).
Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



Texto Anterior: Em busca do Kyoto perdido
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.