São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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Fossa ascética

Arqueólogos sugerem que hábitos higiênicos estritos demais mataram os essênios, supostos autores dos manuscritos do mar Morto

Stephen J. Carrera/Associated Press
Segmento dos manuscritos do Mar Morto, que contém partes do Velho Testamento, exposto em museu de Chicago (EUA)


ANDREW GUMBEL
DO "INDEPENDENT"

Algumas vezes, até mesmo os melhores instintos de sobrevivência podem ser mortais. Segundo novas e intrigantes pesquisas feitas por uma equipe internacional de acadêmicos bíblicos, a seita religiosa associada com os famosos manuscritos do mar Morto pode ter sido varrida do mapa por sua higiene excessivamente escrupulosa.
Os essênios, que estabeleceram uma comunidade ascética em Qumran, na margem noroeste do mar Morto, rejeitavam a prática comum entre os beduínos de fazer suas necessidades fisiológicas a céu aberto. Em vez disso, eles criaram uma fossa a cerca de um quilômetro da sua comunidade e ali enterravam seus dejetos, acreditando que aquela prática fosse mais higiênica.
Tamanho esforço, no entanto, parece ter sido contraproducente. Os parasitas e as bactérias nocivas associadas com fezes humanas teriam sido rapidamente mortos pelo sol do deserto se tivessem permanecido acima do solo. Uma vez enterrados, os parasitas conseguiram sobreviver e se multiplicar, criando um ambiente tóxico que infectava os membros da seita dos essênios quando eles iam e vinham de sua latrina.
Os parasitas quase certamente se reproduziam numa cisterna especial usada em cerimônias de purificação, dando um motivo forte para a morte de muitos essênios.
"Algumas pessoas podem rir, mas isso é terrivelmente triste", declarou um dos autores do estudo, James Tabor (da Universidade da Carolina do Norte, nos EUA) ao jornal "Los Angeles Times".
"Eles eram dedicados e tinham um estilo de vida que demandava esforço, mas provavelmente estavam baixando sua expectativa de vida e arruinando seu estilo de vida saudável num esforço para fazer o que é certo", afirmou.
A pesquisa sobre as latrinas feita por Tabor e seus colegas surgiu, curiosamente, de uma controvérsia muito mais ampla sobre a autoria dos manuscritos do mar Morto. Vários estudiosos têm questionado se os essênios realmente os escreveram e até mesmo se eles chegaram a estabelecer uma comunidade em Qumran.
Tabor e Joseph Zias, da Universidade Hebraica de Jerusalém, obtiveram pistas em passagens dos manuscritos que especificavam regras para a higiene. Eles encontraram uma área de solo macio a noroeste de Qumran, pegaram amostras de solo e as mandaram para uma colega francesa analisar.
A colega, Stéphanie Harter-Lailheugue, encontrou preservados nas amostras ovos e outros restos de tênias, lombrigas e oxiúros. Amostras de áreas circundantes, em contraste, se mostraram estéreis.
A área das latrinas é hoje uma importante peça do quebra-cabeça que liga o sítio de Qumran aos manuscritos. O sítio ajuda a desmentir teorias recentes de que, por exemplo, os pergaminhos foram escondidos nas cavernas de Qumran por judeus de Jerusalém que escapavam da opressão dos invasores romanos.
As latrinas também ajudam a explicar pesquisas feitas anteriormente no cemitério de Qumran que estabeleceram que apenas 1 em 20 corpos enterrados ali chegaram aos 40 anos de idade. Cemitérios do mesmo período escavados em Jericó mostraram que, numa população típica, metade das pessoas viveria além dos 40.
"O cemitério de Qumran é o grupo menos saudável que eu já estudei em mais de 30 anos", disse Zias ao jornal americano.

Evidência sólida?
Ele afirma que a evidência que liga os essênios às latrinas é intrigante -mas ainda não é muito sólida. Qumran está em ruínas desde o ano 70, e ainda não foi recuperado material orgânico em quantidade suficiente para datações científicas.
Dois dos manuscritos mencionam o fato de que as latrinas deveriam ser "a noroeste da cidade" e que não fossem visíveis a partir desta. A latrina de Qumran parece cumprir os pré-requisitos.
Tabor admitiu, no entanto, ser possível, como proposto recentemente, que o sítio tenha sido uma fábrica de cerâmica tocada por uma comunidade judaica ortodoxa.

Teorias
Os manuscritos do mar Morto têm sido uma fonte constante de fascínio desde sua descoberta, feita por acaso em 1947 por beduínos. Eles dão um vislumbre raro, se não único, da vida e dos costumes no tempo em que Jesus Cristo nasceu e morreu. São também os únicos documentos da era bíblica que se sabe terem sido escritos antes do ano 100 da Era Cristã; em outras palavras, eles são mais antigos que os Evangelhos.
Quase todos os aspectos dos manuscritos já foram objeto de especulações e teorias das mais variadas. Por um lado, estudiosos da religião têm promovido discussões sobre se os manuscritos foram feitos pelos próprios essênios ou, digamos, por um grupo essênio dissidente. Por outro, teóricos da conspiração têm postulado que os pergaminhos e papiros de Qumran são fraudes ou que foram "plantados" no sítio arqueológico por seres extraterrestres.
Uma teoria mais intrigante, mas quase completamente sem apoio, afirma que a Igreja Católica deliberadamente barrou a publicação dos manuscritos para proteger a imagem de Jesus e a sua vida, que poderiam ser abaladas pelo documento.


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