São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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Uma verdade inconsistente


A verdade de Al Gore só parece alcançar quem se dispõe a ouvi-la


Se alguém merece o título desairoso de "ecochato", é Albert Gore Jr., conhecido entre desafetos como Al Bore.
Em 1992, quando a cena política internacional acordava para a questão da mudança climática global, o então jovem senador americano já estava na praça com o livro "A Terra em Balanço: Ecologia e o Espírito Humano". Narrava ali coisas como uma visita à floresta amazônica, ciceroneado por Tom Lovejoy. O biólogo lhe chamara a atenção para a existência de mais espécies de ave numa milha quadrada da Amazônia do que em toda a América do Norte -"o que significa que estamos silenciando milhares de canções que nem chegamos a ouvir", escreveu.
Não se trata, já se vê, de um estranho na ninhada que bebeu na fonte da "Primavera Silenciosa" (1962), de Rachel Carson (1907-1964). Depois de 1992, Gore se tornou o vice-presidente de Bill Clinton e "ex-próximo presidente dos Estados Unidos", como observa com rara auto-ironia o protagonista do documentário "Uma Verdade Inconveniente", atualmente em cartaz no Brasil.
Como quase toda peça de propaganda, o filme é chato. Na realidade, resume-se a uma versão empetecada da palestra-show de conscientização sobre aquecimento global que Gore repete pelo mundo afora. Até ao Brasil o candidato derrotado à Casa Branca voltou, para embasbacar com ela alguns freqüentadores da Câmara Americana de Comércio e promover tanto o filme quanto a edição nacional do livro de mesmo título (Editora Manole, 328 págs., R$ 64,00).
No último dia 11, a platéia de menos de cem pessoas da sala 7 do Cine Bristol, em São Paulo, desatou a aplaudir o documentário quando terminou a projeção. Até um professor que roncara alto durante a sessão bateu palmas. Claramente, uma congregação de pré-convertidos.
Esta vem a ser uma das inconsistências da verdade -sim, verdade- pregada por Gore: ela só parece alcançar quem se dispõe a ouvi-la. Nesse sentido, a obra impressa talvez seja mais eficaz, na medida em que pode aleatoriamente atrair, com suas fotos brilhantes, o herege freqüentador de livrarias. No cinema, fica restrito ao gueto de 115 lugares.
Numa confraria, passa por desculpável a carência de senso crítico necessária para aplaudir a película. Seus defeitos revelam que foi talhada para atingir o público americano, prioritariamente (mas é miopia enxergar nela uma peça eleitoral, pois sua mensagem resulta tão impopular por lá quanto atacar o Bolsa Família por aqui). Se o mesmo se evidenciasse por qualidades, estaríamos todos batendo palmas, como fez esta coluna com o hollywoodiano "O Dia Depois de Amanhã" (2004).
"Uma Verdade Inconveniente" acerta em cheio quando mira no governo dos EUA para denunciar a obstrução política de medidas internacionais destinadas a prevenir e remediar a mudança climática global. Por outro lado, erra na mosca ao cultuar a personalidade de Gore como paladino do clima e ao fechar o sermão com uma mensagem tipicamente ianque de engajamento individual.
"Use uma sacola de compras reutilizável", "consuma menos carne vermelha" e "compre produtos locais" são recomendações sensatas, mas não mais do que isso. Falta ao filme e ao livro uma reflexão política mais profunda, talvez impossível: reconhecer, e quem sabe explicar, que Al Gore não deixou de ser presidente dos EUA porque se dedica ao clima, mas que se dedica ao clima porque não conseguiu se eleger presidente dos EUA.

MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático"Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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