|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Micro/Macro
Mapeando a Terra do céu
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Os proprietários de terra egípcios
anualmente enfrentavam um sério
problema: as cheias do Nilo submergiam
as demarcações das terras, causando
muita briga e confusão: os coletores de
impostos do faraó não sabiam o que cobrar de quem. Como a necessidade é a
melhor escola, o uso de mapas passou a
ser extremamente importante para o governo. Mas o desenvolvimento de mapas
não foi apenas causado por interesses
econômicos. Mapas antigos revelavam
toda a visão de mundo da cultura que os
produziu, toda a cosmologia da época.
Mapas tentavam encapsular não só o reconhecimento geográfico da Terra, mas
seu lugar nos céus.
No século 3 a.C., Eratóstenes de Cirena
mediu pela primeira vez a circunferência
da Terra. Juntamente com o grande astrônomo grego Hiparco, Eratóstenes desenvolveu a linguagem da cartografia em
termos do globo terrestre e do sistema de
latitude e longitude, usada até hoje.
Depois de um intervalo de 15 séculos
durante a Idade Média, a cartografia passou por um período de grande renovação com a expansão das viagens exploratórias dos portugueses e espanhóis. O
desenvolvimento da cartografia aliava
interesses econômicos aos de sobrevivência das tripulações dos navios, assim
como estratégias bélicas: para conquistar
o território do inimigo ou para explorar
as riquezas de uma colônia, nada mais
básico do que conhecer seus detalhes
geográficos.
Passados 500 anos, nós entramos em
uma nova fase de cartografia terrestre.
Com a ajuda do ônibus espacial Endeavour, cientistas da Nasa, a agência espacial dos EUA, deverão criar um mapa
praticamente completo da superfície terrestre, não só em latitude e longitude,
mas também em altitude, isto é, um mapa tridimensional de nosso planeta.
A resolução do mapa será de 30 metros, contra a resolução dos mapas
atuais, que é de 90 metros, e a precisão
das medidas de altitude será entre 6 metros e 18 metros.
A quantidade absurda de dados gerada
pelos radares da Endeavour encherá o
equivalente a 13.500 CDs. A missão reflete uma tendência cada vez maior na pesquisa de ponta, que é a criação de colaborações internacionais, no caso com as
agências espaciais italiana e alemã.
Claro, esse tipo de empreendimento
não foge à regra geral dos mapas do século 16: existem interesses econômicos e
militares em jogo, se bem que a propaganda vai para o lado dos benefícios que
o novo mapa trará para a sociedade. Por
exemplo, os dados sobre as variações em
altitude ajudarão os estudos sobre erosão em diversos terrenos, terremotos,
enchentes, vulcões e mudanças climáticas. Os mapas ajudarão também na manutenção das florestas e na identificação
de áreas propícias à implantação de antenas e outros dispositivos usados em telecomunicação. É curioso: hoje nós temos mapas topográficos mais precisos
das superfícies de Vênus e de Marte do
que da Terra.
Um dos maiores interessados no projeto é o Departamento de Defesa Norte-Americano, que entrou com US$ 200 milhões no financiamento. Detalhes da ordem de 30 metros são suficientes para localizar fábricas e depósitos clandestinos
de armamentos, sejam eles nucleares ou
bioquímicos.
Com isso, apenas dados com resolução
de 90 metros serão liberados ao público
em geral. Acesso a dados com maior precisão tem de ser autorizado individualmente. Imagino que o Departamento de
Defesa também esteja planejando usar
os dados não só para defender, mas para
atacar; caso uma fábrica clandestina de
enriquecimento de materiais nucleares
seja encontrada, seria fácil destruí-la remotamente, usando mísseis balísticos.
Com o final da Guerra Fria, o inimigo
tornou-se invisível, um grupo terrorista
isolado, em vez de uma nação.
Para produzir esse mapa, o ônibus espacial usará duas antenas, uma na nave e
outra na extremidade de um mastro de
60 metros, o maior já usado no espaço.
As duas antenas captarão as ondas emitidas pela nave, após elas serem refletidas
pela superfície da Terra. A pequena diferença de distância entre as antenas gerará dois mapas que, quando comparados,
produzirão informação sobre a altitude.
Do céu, nada se esconde.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro
"Retalhos Cósmicos".
Texto Anterior: Em breve Próximo Texto: Periscópio - José Reis: Novos rumos na pesquisa sobre o câncer Índice
|