|
Próximo Texto | Índice
Estudo de ocupação da América revê identidade de Luzia
Crânio com características de africanos achado em Minas Gerais seria apenas parte de uma população muito variada
Novo modelo, proposto por quatro cientistas do Brasil e
da Argentina, reconcilia genética com dados obtidos
em esqueletos antigos
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
Luzia, afinal, talvez não tivesse nada de extraordinário. Um
novo modelo de povoamento
da América sugere que os primeiros habitantes do continente vieram em uma única grande
migração, mas eram um grupo
muito mais diversificado do
que os cientistas têm sugerido.
Segundo essa nova visão, os
fósseis humanos desenterrados em Lagoa Santa, Minas Gerais, não eram uma população
biologicamente distinta das populações indígenas atuais.
Eram mais provavelmente parte de uma imensa variabilidade
de tipos que esteve presente
nas Américas desde que os primeiros humanos botaram os
pés aqui, cerca de 18 mil anos
atrás, vindos da Ásia.
Ou seja, apesar de Luzia -o
crânio mais famoso de Lagoa
Santa e um dos mais antigos
das Américas, com 11 mil
anos- ser de fato mais parecida
com os aborígenes da Austrália
ou com os africanos do que com
os índios atuais, ela não representa uma onda migratória separada que teria chegado ao
continente antes dos asiáticos
típicos (mongolóides).
A singularidade de Luzia vem
sendo defendida há quase duas
décadas pelo antropólogo Walter Neves, da USP, e por seu colega Héctor Pucciarelli, da Universidade de La Plata, Argentina. Eles mediram dezenas de
crânios de Lagoa Santa e de outras populações antigas e chegaram à conclusão de que o
continente foi ocupado por
"dois componentes biológicos
principais": o paleoíndio ("negróide") e o mongolóide.
O problema é que, até agora,
as análises de DNA têm falhado
em explicar como os paleoíndios se extinguiram sem deixar
rastro genético nenhum em populações atuais.
Reconciliação
Entram em cena o antropólogo argentino Rolando González-José, do Centro Nacional
Patagônico, e os geneticistas
brasileiros Fabrício Santos
(Universidade Federal de Minas Gerais), Maria Cátira Bortolini (Universidade Federal do
Rio Grande do Sul) e Sandro
Bonatto (PUC-RS).
Disposto a reconciliar dados
genéticos com as análises de
ossos antigos, o quarteto analisou mais de 10 mil dados genéticos e 576 medidas de crânios
de populações extintas e atuais
do Novo e do Velho Mundo.
Os resultados do esforço, publicados on-line na revista
"American Journal of Physical
Antropology", questionam tanto a identidade de Luzia quanto
o modelo mais famoso de povoamento da América, o das
três migrações, proposto também há quase duas décadas pelos americanos Christy Turner
e Joseph Greenberg.
"Os dois modelos foram
abrandados", disse à Folha
González-José, que mantém
colaboração com Neves e já defendeu a teoria do brasileiro
em vários artigos científicos.
Segundo o pesquisador, o estudo mostra que houve trocas
genéticas recentes entre populações asiáticas e americanas
do Ártico. Isso fez com que os
caracteres mongolóides -desenvolvidos na Ásia há pouco
mais de 12 mil anos- se fixassem mais fortemente entre os
esquimós e os aleutanos, habitantes da zona circumpolar.
Essa "mongolização" excessiva no Ártico acaba fazendo
com que a média das populações indígenas atuais pareça
artificialmente asiática. González-José diz que não é isso o
que os dados mostram.
"Se você exclui das análises
os esquimós e os aleutanos, [as
outras populações] não chegam a ser dois componentes
tão claros", diz. Ou, numa caricatura, os primeiros americanos seriam "a população de São
Paulo menos os japoneses".
Ao comparar diversas medidas dessas centenas de crânios
e jogá-las num computador, o
que se vê é um grande contínuo
de formas no qual todas as populações indígenas se acomodam sem precisar recorrer a
mais de uma migração.
É aqui, aliás, que os dados genéticos se encaixam. O novo
estudo confirma algo que Santos e outros geneticistas vinham propondo: que todas as
linhagens de DNA americanas
chegaram de uma vez. "Há uma
migração principal que explica
98% de toda a diversidade das
Américas", diz o cientista.
Procurado pela Folha, Walter Neves foi lacônico: "Prefiro
ignorar o engodo".
Próximo Texto: Reino Unido libera a utilização de embriões híbridos pelos cientistas Índice
|