São Paulo, domingo, 20 de julho de 2008

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Beleza ancestral

Estudo sugere que a evolução da voz humana começou há centenas de milhões de anos, quando éramos peixes

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Ele é feio que dói, o tipo de peixe que você encontraria em um pesadelo; não por nada, seu nome vulgar é peixe-sapo. Mas ele tem seu lado romântico, pois entoa um "canto" para atrair a fêmea.
Uma das espécies do animal inclui um macho ainda mais atencioso, que se compromete a tomar conta dos ovos fertilizados. (Fêmeas adoram compromisso.) Em contexto de agressão, como defesa de território, macho e fêmea grunhem.
Se sua beleza visual não é um grande atrativo, pelo menos o peixe-sapo atrai os cientistas pelo som. Ao estudar o sistema nervoso de larvas de três espécies de peixe-sapo, biólogos verificaram que o circuito nervoso necessário para essas vocalizações é semelhante ao de outros vertebrados mais complexos, como aves e mamíferos, incluindo os humanos.
Trocando em palavras, a origem da fala surgiu na evolução biológica com os peixes, bem antes de os animais começarem a andar em terra firme. O ancestral de todos os cantores de hoje estava nadando há centenas de milhões de anos.
"A água é um meio excelente para a transmissão de som. O uso de som para propósitos de comunicação social é freqüentemente encontrado em peixes que têm hábitos de reprodução noturnos, quando outras pistas, por exemplo, visuais, teriam mais limitação como sinalização social", disse à Folha Andrew Bass, da Universidade Cornell, de Ithaca (EUA), principal autor do estudo, publicado na revista "Science" ao lado de seus colegas Edwin Gilland e Robert Baker.
Usando corantes fluorescentes, eles mapearam através de microscopia os diferentes grupos de células cerebrais em desenvolvimento de larvas de três espécies de peixe-sapo típicas do Atlântico Norte -o Opsanus beta, o Opsanus tau e o Porichthys notatus.

Fala que eu te escuto
"Os sons dos peixes-sapo podem facilmente ser ouvidos debaixo d'água e mesmo ficando perto de um aquário com eles", diz Bass. Para os humanos, a laringe e o ar dos pulmões são essenciais para a criação da fala. Para os peixes, os sons vêm do ar dentro de um órgão especializado, a bexiga natatória, que ajuda o peixe a controlar a profundidade de natação. Os músculos ligados a ela podem ser ativados pelo circuito no cérebro para produzir sons primitivos -basicamente zumbidos e grunhidos sem muita variação.
Outros peixes, mesmo os que não produzem sons, também são capazes de ouvir os peixes-sapos. "Todos os peixes têm um ouvido interno que é extremamente sensível aos sons que os peixes-sapo e outros produzem", diz Bass. "Os peixes têm quase todas as partes do ouvido interno de um ser humano com uma exceção: a cóclea."
O peixe-sapo Porichthys notatus, é conhecido popularmente nos EUA como "mid-shipman", (guarda-marinha, em inglês), nome que certamente não deve agradar a esses cadetes navais, pois trata-se de outro peixe bem feio. Essa espécie tem órgãos luminosos para atrair a presa, e o nome popular possivelmente deriva deles, pois lembram botões dourados de um uniforme naval.
O P. notatus tem duas formas de macho. O "tipo 1" é maior e chegado em compromisso: cria família dentro de um abrigo rochoso. O "tipo 2", é uma espécie de "Ricardão": aproveita-se de seu tamanho menor para se esgueirar na toca e tentar fertilizar parte dos ovos da fêmea.
Apenas o macho 1 vocaliza para atrair a fêmea, e pode ficar a noite toda nessa "serenata". Machos 2 e fêmeas só vocalizam em outros contextos.
"Um dos motivos pelos quais este estudo é tão interessante é que nós geralmente não pensamos nos peixes usando vocalizações", diz a bióloga Melina Hale, da Universidade de Chicago. "Por isso parece incrível o fato de eles o fazerem e de usarem controles neurais comparáveis." Ela e seu colega Daniel Margoliash comentam o estudo de Bass na "Science".
Segundo Hale, a vocalização permite uma forma de comunicação confiável e rápida quando um animal não consegue ver o outro -e isso vale tanto para vertebrados terrestres como para peixes em águas escuras.

Propósito adquirido
Como teria surgido evolutivamente a vocalização subaquática? Que vantagem evolutiva teria um peixe em "falar"? Bass evoca uma resposta do próprio "pai" da teoria da evolução, o naturalista britânico Charles Darwin, que comentava os sons de peixes machos.
"Quando os membros primevos dessa classe [Vertebrata] estavam fortemente excitados e seus músculos violentamente contraídos, sons sem propósito com quase toda certeza seriam produzidos", escreveu Darwin em "A Origem do Homem e a Seleção Sexual". "Se estes provassem ser de algum modo úteis, poderiam prontamente ser modificados ou intensificados pela preservação das variações propriamente adaptadas."
Margoliash, explica: "imagine um cenário no qual não há outros peixes vocalizando, apesar de peixes terem uma perfeita audição. Se sua espécie pode se beneficiar desse meio de comunicação, pense em que vantagens seletivas isso dá".
Atrair o parceiro é uma delas, assim como "grunhir" para defender seu território. Na dúvida, quem ouviu mas não tem como responder prefere nadar em outra direção.


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