São Paulo, domingo, 20 de novembro de 2005

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+ ciência

Obra em três volumes traz de volta trabalho do naturalista português Alexandre Ferreira

Resgate amazônico

Reprodução
Índio da etnia cambeba (rio Japurá, afluente do Solimões), com crânio deformado por prática cultural, desenhado por José Freire


RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Está demorando mais de dois séculos, mas finalmente se começa a resgatar a obra de um dos mais importantes naturalistas a visitar a Amazônia. O baiano Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) passou cerca de nove anos percorrendo a região -as então capitanias de Rio Negro, Grão-Pará, Mato Grosso e Cuiabá. Fez coletas de milhares de espécimes, escreveu centenas de páginas e enviou tudo para Portugal. Coletou amostras de minerais, vegetais e animais -os então "três reinos". Um dos aspectos mais importantes do seu trabalho ganha agora uma edição primorosa. A coleção etnográfica existente em instituições portuguesas foi pela primeira vez toda organizada e fotografada.
José Paulo Monteiro Soares e Cristina Ferrão, os dois editores de "Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira - Coleção Etnográfica", não se limitaram a mostrar a coleção. Foram eles que também ajudaram a organizar parte dela.
Trata-se da mais importante coleção de objetos de índios brasileiros do século 18.
"É uma idéia antiga", diz Soares sobre a vontade de divulgar as pesquisas do naturalista luso-brasileiro. O destino de Ferreira e de suas coleções foi trágico. Ele voltou a Portugal, mas não teve condições de organizar, analisar e editar o que tinha coletado. Também teria sofrido sabotagens de um rival. "Seu chefe, o italiano Domenico Vandelli, procurou prejudicar sua carreira", diz Soares. Logo acontece a invasão francesa e parte da coleção de flora e fauna é saqueada pelos franceses, obra do naturalista Geoffroy Saint-Hilaire (1772-1844), que acompanhara Napoleão na expedição ao Egito que deu origem à moderna egiptologia. Com o aval de Vandelli.
A coleção foi se espalhando ou sendo destruída nestes mais de dois séculos. Hoje, descobrir o que existe de Ferreira pelo mundo é um verdadeiro trabalho de detetive. O livro atual é o terceiro que a Editora Kapa lança sobre a obra do baiano e seus colaboradores. O primeiro, de 2002, reproduzia aquarelas, hoje na Universidade de Lisboa, de animais, plantas de cidades e vilas. Os textos relativos às imagens estão no Brasil. O livro, pela primeira vez, juntava imagem com texto. O segundo livro, de 2003, tratava de imagens de pássaros que estão na França. E há pelo menos mais um livro em gestação, cujo tema Soares e Ferrão preferem manter como surpresa.
"A gente conhece parte do trabalho de Ferreira e vai descobrindo que é muito mais amplo", diz Soares. O naturalista foi acompanhado na expedição por dois desenhistas -"riscadores", como se dizia na época-, José Codina e José Freire. Nem sempre eles assinavam os profusos desenhos. E nem sempre havia papel. Uma das etiquetas de identificação de material foi feita em uma carta de baralho.
Em 1892, como parte da comemoração dos 400 anos da descoberta das Américas por Cristovão Colombo, o material coletado por Ferreira é levado para uma exposição em Madri. Mas apenas metade é devolvida pelos espanhóis. Um incêndio ateado por estudantes em 1978 na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa destrói a coleção de animais de Ferreira.
Parte dos escritos é copiada e vai parar no Brasil. O acervo indígena fora enviado ao Museu da Ajuda, que depois foi fechado. Parte também foi enviada à Universidade de Coimbra, em Portugal, onde Ferreira tinha estudado.
Em defesa dos franceses pode-se dizer que eles utilizaram o material de Ferreira para descrever novas espécies. Fizeram o trabalho científico que Ferreira não conseguiu fazer.

Tríptico
O novo livro está dividido em três volumes. O primeiro mostra o material etnográfico do Museu Mayenense da Academia de Ciências de Lisboa. O segundo reproduz o acervo do Museu Antropológico da Universidade de Coimbra. E o terceiro mostra, também de modo inédito, lado a lado, desenhos de índios e os textos escritos por Ferreira, hoje na Biblioteca Nacional, no Rio, transcritos e comentados por José Pereira da Silva, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Entre os vários textos na obra merece destaque o do almirante Max Justo Guedes, que comenta as viagens de Alexandre Rodrigues Ferreira no contexto tanto das expedições científicas do Iluminismo quanto da necessidade portuguesa de conhecer e demarcar suas fronteiras americanas com os espanhóis. Há um mapa com os trajetos das viagens que deixa claro esse papel. Não foi por nada que escritos de Ferreira foram usados por Joaquim Nabuco quando cuidou da discussão de limites com a então Guiana britânica.
O acervo na academia estava guardado em condições precárias até 1975, quando se fez um primeiro esforço para sua conservação. Teve papel importante no processo a pesquisadora Tekla Hartmann, então no Museu Paulista da USP, que, em um visita a Lisboa em 1982, deu grande impulso ao trabalho de preservação e, principalmente, organização do acervo -que foi agora terminado por Soares e Ferrão.
Um ponto favoreceu a preservação dos objetos: o clima bem mais seco de Lisboa comparado com o do Brasil. Mesmo cocares de penas de 200 anos de idade estão ainda em boas condições.

Variedade infinita
A lista de objetos coletados por Ferreira é extensa. Ele literalmente não deixava pedra sobre pedra, pena sobre pena. Estão nas duas instituições portuguesas colares, braçadeiras, brincos, pentes, bolsas, cestos, agulhas, bocais de zarabatana, máscaras, clavas, arcos, flechas, trombetas, machados, vasos, vasilhas, anzóis, remos... sem falar na variedade dos próprios povos indígenas.
Para fotografar as peças foi necessário criar estúdios de fotografia nos locais e longas estadias em Portugal. São livros caros de produzir, e seriam inviáveis se não houvesse subsídios como os da Fundação Vitae e da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos). Dos 6.000 exemplares impressos inicialmente, mais de 2.000 foram enviados gratuitamente para bibliotecas no Brasil, em Portugal e em grandes universidades e museus do resto do mundo.

Viagem ao Brasil
3 vols., R$ 120
de Alexandre Rodrigues Ferreira (org. José Paulo Monteiro Soares e Cristina Ferrão). Kapa Editorial, 2005



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