São Paulo, sexta-feira, 21 de maio de 2010

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ANÁLISE

Façanha de Venter suscita excesso de esperança e medo

No médio prazo, técnica poderá levar a bactérias produtores de combustíveis

Jonathan Alcorn/Bloomberg
O cientista-empresário Craig Venter discute a vida artificial em conferência em março

MARCELO LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

Para bom entendedor, meia bactéria basta. Embora Craig Venter tenha anunciado a primeira "célula sintética", na realidade seu grupo não criou um organismo a partir do zero. Ele provou que é capaz de recriar e fazer funcionar um organismo ultrassimples apagando seu software biológico e enxertando outro muito parecido.
Não é pouca coisa. O software, no caso, é o genoma, coleção de genes necessários para a bactéria Mycoplasma mycoides viver e se reproduzir.
Venter conseguiu a façanha com um milhar de genes. Ao todo, cerca de 1 milhão de letras A, T, C ou G, cuja sequência a equipe escreveu num computador e depois sintetizou numa longa fita de DNA.
O estudo representa um salto para a engenharia genética. Até agora, ela se limitava a inserir uma dezena de genes estranhos em organismos, como soja ou de milho, para que adquirissem características desejáveis, como resistência a pragas. Agora se manipulam genomas inteiros.
O homem chegou mais perto, portanto, do cenário inquietante que levou à Conferência de Asilomar, em 1975. Dois anos após a invenção da tecnologia de DNA recombinante, preocupados com danos potenciais da nascente biotecnologia ao ambiente e à saúde, 140 pesquisadores se reuniram na praia californiana para traçar diretrizes de biossegurança.
Venter não foi longe o bastante para suscitar uma nova Asilomar. Embora alguns tipos de Mycoplasma sejam patogênicos (capazes de causar doenças), a recriada teve quatro genes ligados à virulência deletados. Deve ser inofensiva.
Além disso, nada impede incluir também alguns genes suicidas. Eles detonariam a autodestruição da célula assim que ela entrasse em contato com algum elemento do ambiente fora do laboratório.
Melhor dizendo: a complexidade inerente a qualquer organismo pode, sim, impor limites às fantasias biotecnológicas. O próprio Venter relata que a troca espontânea de uma só letra, em meio ao milhão de caracteres enxertados, bastava para desativar todo o genoma.
Há fronteiras objetivas, assim, para aquilo que o homem pode pôr e dispor num genoma. E isso num ser simplório como Mycoplasma, que nem núcleo celular tem (a bactéria é classificada como organismo procarioto). Mesmo no baixo clero dos seres unicelulares há organismos mais complexos, ditos eucariotos, como os parasitas causadores da malária e do mal de Chagas, com núcleos definidos e DNA organizado em vários cromossomos.
Está longe o tempo -se é que algum dia virá- em que a biologia será capaz de sintetizar células cardíacas para remendar corações infartados, por exemplo. O genoma humano é milhares de vezes maior que a bactéria inventada por Venter. Nossos 46 cromossomos são estruturas complexas, cuja estrutura contribui para definir quais genes serão ou não lidos pela célula, e quando.
Apesar da retórica, Venter é honesto a respeito. Quando fala de aplicações, restringe-se a conceitos menos grandiloquentes e mais rentáveis, no médio prazo: bactérias capazes de produzir hidrogênio a partir de água, assim como leveduras produzem álcool a partir de açúcares. Os biocombustíveis brasileiros que se cuidem.
Problema: bactérias também se destacam na produção de toxinas poderosas, como as do antraz e do botulismo. São os cavalos de batalha da guerra biológica. Genomas sintéticos soam como armas de sonho, se o seu custo vier a cair tão rápido quanto o de outras ferramentas biotecnológicas.
Pensando bem, Asilomar talvez não seja uma má ideia.


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