São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2008

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+Marcelo Leite

Genoma a US$ 399


Uma das objeções é que pessoas comuns não saberão interpretar a informação

A chamada genômica pessoal está mesmo deixando de ser uma ficção do marketing para se tornar realidade. A empresa 23andMe, dos Estados Unidos, anunciou que baixou o preço de sua análise individualizada do genoma de US$ 999 para U$ 399. Agora, se o serviço traz mesmo benefício real para o consumidor, isso já são outros 400.
A 23andMe -uma alusão aos 23 pares de cromossomos da espécie humana- não é a única provedora desse tipo de serviço. Suas maiores concorrentes são deCODEme e Navigenics. Tudo bem moderninho: paga-se com cartão de crédito, o kit para saliva chega pelo correio e volta por ele.
Não se trata de seqüenciamento (soletração) de todo o DNA, como o concluído em 2003 pelo PGH (Projeto Genoma Humano) a US$ 3 bilhões. O preço do serviço completo caiu um bocado, desde então, mas o cliente do único provedor no mercado -Knome, também dos EUA- ainda precisa desembolsar US$ 350 mil para receber um CD com 3 bilhões de letras A, T, C ou G enfileiradas.
As opções mais em conta só fazem a chamada análise de SNPs (pronuncia-se "snips"). É a abreviação em inglês de "polimorfismos de nucleotídeo único", uma troca de letra em posições determinadas da cadeia do DNA.
Cada um de nós pode ter até 1 milhão de SNPs diferentes de outra pessoa.
A maioria dos pontos do genoma onde ocorrem essas trocas já está mapeada. Bilhões de outras posições na seqüência ou não comportam variações (as mutações seriam prejudiciais) ou elas não têm grande efeito. A lógica da análise de SNPs é que doenças comuns devem correlacionar-se com as variantes individuais.
Por exemplo, muitos que desenvolvem diabetes tipo 2 teriam substituições de tais e tais letras por tais outras nas posições x, y, z etc. dos cromossomos A, B , C... e assim por diante. Quem consultar a lista de "condições" da 23andMe (muitas não são doenças; confira a relação, em inglês, aqui: www.23andme.com/health/ all) se decepcionará. Há no rol de 80 itens algumas coisas importantes, como diabetes e câncer de mama, mas também sensibilidade ao sabor amargo e tipo de cera de ouvido.
Não faltam críticos desse tipo de serviço. Uma das objeções mais sérias é que pessoas comuns não saberão interpretar a informação. As empresas põem muita literatura à disposição do cliente na internet, mas não muito mais que isso.
No caso do diabetes tipo 2, os 20 SNPs associados explicariam só 2% a 3% da alta incidência em algumas famílias. O cliente da 23andMe com essas variantes poderia concluir que terá a doença. Na realidade, só tem uma probabilidade aumentada.
Há quem veja no esquema um furo muito mais grave. O jornal "The New York Times" publicou na terça-feira reportagem de Nicholas Wade com o geneticista de populações David Goldstein, da Universidade Duke (EUA), na qual o pesquisador põe sob suspeita a própria base científica da hipótese doença comum/variante genética comum.
Para Goldstein, é mais provável que a maioria das pessoas com tais moléstias sejam portadoras de variações raras, cuja detecção está fora de alcance no momento. Os poucos SNPs suspeitos encontrados só informam sobre correlações fracas. Nada dizem sobre os mecanismos biológicos das doenças -isso, sim, daria grande poder preditivo à análise do genoma individual.
Consultado sobre empresas como 23andMe, Goldstein respondeu na bucha: "Não passam de genômica recreacional".


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).

E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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