São Paulo, segunda-feira, 21 de outubro de 2002

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ANTÁRTIDA

Nasa quer atingir águas do Vostok, que pode abrigar um ecossistema intocado; europeus temem contaminação

Sonda em lago polar divide especialistas

CLAUDIO ANGELO
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA

Um lago coberto por quase 4 quilômetros verticais de gelo na Antártida promete virar o mais novo palco de disputa entre os norte-americanos e o resto do mundo. Como em várias brigas do tipo, o motivo inicial parece fútil: a Nasa, agência espacial dos Estados Unidos, quer usar uma sonda para perfurar o gelo e atingir as águas do lago. Só que ninguém mais concorda.
Seria mesmo uma discussão fútil, se esse lago não se chamasse Vostok e não fosse um dos últimos ambientes da Terra onde o homem jamais esteve.
O fato de ter água líquida a temperaturas tão baixas e sob uma pressão tão grande pode significar que o Vostok abriga seres vivos -quase certamente micróbios- diferentes de tudo o que se conhece no planeta. Um belo indício de que a vida pode florescer em outros mundos, como a lua gelada Europa, de Júpiter.
É justamente esse o mistério que os cientistas americanos querem resolver. Eles estão ansiosos para mandar uma sonda batizada ICE (sigla em inglês para Integrated Cryobot Experimental Probe, ou sonda experimental integrada Cryobot) para atingir a massa d'água do Vostok, que se estende por 10 mil quilômetros quadrados (quase uma Jamaica) e tem profundidades de até 500 metros.
O problema é que ninguém garante que seja possível enviar um artefato humano para o Vostok sem risco de contaminação. Até agora, o mais perto que se chegou da lâmina d'água foi 120 m, com um buraco no gelo de 3.623 m de profundidade. Pesquisadores que trabalham na coleta e análise da coluna de gelo sobre o lago -que guarda em bolhas de ar aprisionadas o testemunho de como o clima terrestre variou nos últimos 420 mil anos- acham que, por enquanto, esse é o limite seguro.
O consenso foi quebrado por cientistas dos EUA em julho, durante reunião do Scar (Comitê Científico para Pesquisa Antártica, na sigla em inglês) na China.
"Eles se posicionaram muito fortemente a favor [da perfuração"", disse o glaciologista Jefferson Cardia Simões, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), membro do grupo de glaciologia do Scar. "A recomendação do comitê é que não se fure antes de todos os testes possíveis de descontaminação. Só que o Scar não tem poder de polícia."
O Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa, que criou a tecnologia do Cryobot, afirma que ela é segura. A sonda, de 1 m de comprimento, 12 cm de diâmetro e movida a eletricidade, tem uma ponta metálica que aquece e derrete o gelo e possui equipamentos capazes de transmitir dados enquanto perfura. É esse instrumento que a Nasa quer enviar às capas de gelo de Marte e Europa.
A princípio, é um instrumento mais delicado que as brocas de gelo usadas hoje, que precisam usar querosene e freon -poluentes- para evitar que o buraco feche. Mas os cientistas do Scar, especialmente os europeus, preferem não correr riscos. A idéia é convencer os americanos a fazer as sondagens em algum outro dos cerca de 60 lagos do gênero que se estima haver na Antártida.

A última fatia
Enquanto a arenga não se resolve, os pesquisadores continuam tentando entender como o Vostok se formou. Simões, juntamente com um grupo da França, analisou os últimos 89 metros de gelo glacial (ou seja, originado fora do lago, por queda de neve) do testemunho de gelo do lago.
Os resultados, que saem na próxima edição da revista "Annals of Glaciology", mostram que o registro climático do lago já deu o que tinha de dar.
Nessa camada profunda, a mistura do gelo originado de fora com o gelo de acreção (formado pela água do lago) é tão grande que a análise química das bolhas de ar já não permite verificar a alternância de períodos mais quentes e mais frios detectada no restante do testemunho.
Em compensação, o grupo de Simões encontrou no gelo partículas grandes demais para terem ido parar ali sopradas pelo vento. Essa "farinha glacial" é resultado do atrito do gelo com o leito rochoso e indica que, antes de flutuar sobre o lago, a imensa massa de gelo cobria rocha.
Segundo Simões, isso é um dado importante para entender a formação do Vostok. "Não sabemos qual é o tipo de rocha embaixo dele até hoje", disse. Também pode ser uma dica preciosa sobre se o lago já existia antes de ser coberto pelo gelo. "Achamos que ele é preexistente", diz o brasileiro.



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