São Paulo, quinta-feira, 21 de outubro de 2004

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BIOLOGIA MOLECULAR

Consórcio anuncia nova versão da seqüência do DNA humano pela 4ª vez desde junho de 2000

Genoma 34.0 rebaixa o número de genes

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Hoje se anuncia, pela quarta vez em quatro anos, que o seqüenciamento (soletração) do genoma humano foi concluído. Quer dizer, em termos. É a 34ª versão, e outras virão. Ainda há 20% do total de mais de 3 bilhões de caracteres por transcrever, que permanecem soterrados em seqüências por ora indecifráveis.
Genoma é a coleção completa de genes de uma espécie, ou seja, o acervo de receitas hereditárias que as células consultam para fabricar todas as proteínas características de um organismo. Essa memória vem gravada em DNA (ácido desoxirribonucléico), substância ultracompactada nos cromossomos alojados no núcleo das células.
A molécula de DNA, que tem forma de uma hélice dupla contínua, guarda em sua parte interna uma seqüência de caracteres químicos A (amina), T (timina), C (citosina) ou G (guanina). A sucessão de "palavras" de três letras, chamadas códons, define a ordem dos aminoácidos que especifica a identidade da proteína. Nessa visão simplificada, a cada proteína corresponderia um gene.
Por falar nisso, pela nova contagem são só 20 mil a 25 mil os genes da espécie humana. Uma correção de no mínimo 17% sobre a estimativa anterior, os 30 mil ou 40 mil aventados em 2001, no segundo anúncio da façanha biomolecular. Em outras palavras, se o genoma for mesmo o Livro da Vida de que falam os geneticistas, eles não sabem ainda ao certo nem quantos versículos ele contém.
Todas essas novidades estão no periódico científico "Nature" (www.nature.com) desta semana. É a mesma revista que publicou com muita fanfarra, em 15 de fevereiro de 2001, o rascunho ("draft", em inglês) da seqüência do genoma humano. A edição especial tinha 446 páginas, 61 das quais dedicadas ao artigo principal, assinado por 249 autores do consórcio público internacional Projeto Genoma Humano (PGH).
A concorrência norte-americana, representada pela "Science" (www.sciencemag.org) e pela companhia privada Celera, não ficou muito atrás. A revista publicou um dia depois a versão do genoma produzida sob a liderança do cientista-empresário Craig Venter num volume de 290 páginas, 47 para o trabalho da Celera. A estimativa do número de genes também era um pouco menor que a do PGH: 26 mil a 38 mil.
Na época, as duas finalizações foram saudadas como a maior realização da biologia -da ciência, por que não?- no século 20. Seriam o início de uma revolução na medicina, que a tornaria uma tecnociência exata, capaz de projetar medicamentos certeiros como mísseis e até de moldar as terapias às necessidades moleculares de cada pessoa. Essas promessas ainda estão longe do cumprimento.

Meta alcançada
O artigo que sai hoje na "Nature" tem só 15 páginas. Emprega um gerúndio sintomático no título, "Finalizando a seqüência eucromática do genoma humano" (eucromatina é a parte do genoma em que se concentram os genes). Toma o cuidado de chamar de "seqüência quase completa" a nova transcrição do genoma, embora tenha ultrapassado a meta de 1 erro em 10 mil letras transcritas, atingindo 1 em 100 mil.
Não é por acaso, assim, que o artigo de comentário publicado no mesmo número da revista defina como "fim do começo" a nova realização. Seu autor, Lincoln Stein, do Laboratório de Cold Spring Harbor (EUA), afirma que "leitores podem ser desculpados por ficarem um pouco confusos com o [novo] anúncio".
Stein termina por reconhecer que o genoma, a cada nova releitura, se revela muito mais complexo do que na visão tradicional, que punha toda a ênfase nos genes. Com apenas 20 mil ou 25 mil deles, é impossível explicar o repertório de mais de 100 mil proteínas da espécie humana. Ganham cada vez mais importância, assim, as funções reguladoras de seqüências não-codificantes, que se encontram fora dos genes.
"Ao seqüenciar o genoma humano, os pesquisadores já galgaram montanhas e percorreram uma estrada longa e sinuosa", escreve Stein, mantendo a habitual retórica genômica.
"Mas estamos apenas no fim do começo: à frente está uma nova cadeia de montanhas, que precisaremos mapear e explorar enquanto tentamos entender como todas as partes reveladas pela seqüência do genoma trabalham juntas para produzir vida."
Dito de outra maneira: o genoma ainda vai dar muito o que pesquisar.

Estocada em Venter
A publicação conjunta das seqüências do consórcio e da Celera, em fevereiro de 2001, foi considerada na época uma vitória técnica de Craig Venter. O PGH tem sua vingança agora, três anos e meio depois, com outro artigo na edição de hoje da "Nature" afirmando que o método empregado por ele tem problemas sérios.
Venter criou uma técnica de seqüenciamento muito mais rápida e barata, apelidada de "shotgun" (espingarda cartucheira). Como a analogia implícita no nome sugere, ela consiste em estilhaçar várias cópias do genoma inteiro em milhões de seqüências curtas. Os fragmentos são então soletrados em paralelo e a seqüência final, montada com auxílio de programas de computador.
O PGH seguia método diverso, baseado num mapeamento prévio seguido de transcrição letra por letra. A montagem final seria feita tomando o mapa como guia. Mais lento, porém mais confiável, diziam os adversários de Venter.

Veredicto
O artigo de Xinwei She e colaboradores na "Nature" de hoje lhes dá razão. Ele conclui que o método de Venter se dá mal com inúmeros trechos duplicados do genoma que compõem 5%-6% da eucromatina, omitindo-os da seqüência final. Com isso, o genoma montado pela Celera teria passado batido por 36 genes e deixado escapar parcialmente outros 67.
Embora a seqüência do PGH esteja longe de completa, essa análise sustenta que a técnica apressada da Celera ficou ainda mais longe da perfeição.


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