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BIOLOGIA MOLECULAR
Consórcio anuncia nova versão da seqüência do DNA humano pela 4ª vez desde junho de 2000
Genoma 34.0 rebaixa o número de genes
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
Hoje se anuncia, pela quarta vez
em quatro anos, que o seqüenciamento (soletração) do genoma
humano foi concluído. Quer dizer, em termos. É a 34ª versão, e
outras virão. Ainda há 20% do total de mais de 3 bilhões de caracteres por transcrever, que permanecem soterrados em seqüências
por ora indecifráveis.
Genoma é a coleção completa
de genes de uma espécie, ou seja,
o acervo de receitas hereditárias
que as células consultam para fabricar todas as proteínas características de um organismo. Essa
memória vem gravada em DNA
(ácido desoxirribonucléico),
substância ultracompactada nos
cromossomos alojados no núcleo
das células.
A molécula de DNA, que tem
forma de uma hélice dupla contínua, guarda em sua parte interna
uma seqüência de caracteres químicos A (amina), T (timina), C
(citosina) ou G (guanina). A sucessão de "palavras" de três letras,
chamadas códons, define a ordem dos aminoácidos que especifica a identidade da proteína. Nessa visão simplificada, a cada proteína corresponderia um gene.
Por falar nisso, pela nova contagem são só 20 mil a 25 mil os genes da espécie humana. Uma correção de no mínimo 17% sobre a
estimativa anterior, os 30 mil ou
40 mil aventados em 2001, no segundo anúncio da façanha biomolecular. Em outras palavras, se o genoma for
mesmo o Livro da Vida de que falam os geneticistas, eles não sabem ainda ao certo nem quantos
versículos ele contém.
Todas essas novidades estão no
periódico científico "Nature"
(www.nature.com) desta semana. É a mesma revista que publicou com muita fanfarra, em 15 de
fevereiro de 2001, o rascunho
("draft", em inglês) da seqüência
do genoma humano. A edição especial tinha 446 páginas, 61 das
quais dedicadas ao artigo principal, assinado por 249 autores do
consórcio público internacional
Projeto Genoma Humano (PGH).
A concorrência norte-americana, representada pela "Science"
(www.sciencemag.org) e pela
companhia privada Celera, não ficou muito atrás. A revista publicou um dia depois a versão do genoma produzida sob a liderança
do cientista-empresário Craig
Venter num volume de 290 páginas, 47 para o trabalho da Celera.
A estimativa do número de genes
também era um pouco menor
que a do PGH: 26 mil a 38 mil.
Na época, as duas finalizações
foram saudadas como a maior
realização da biologia -da ciência, por que não?- no século 20.
Seriam o início de uma revolução
na medicina, que a tornaria uma
tecnociência exata, capaz de projetar medicamentos certeiros como mísseis e até de moldar as terapias às necessidades moleculares de cada pessoa. Essas promessas ainda estão longe do cumprimento.
Meta alcançada
O artigo que sai hoje na "Nature" tem só 15 páginas. Emprega
um gerúndio sintomático no título, "Finalizando a seqüência eucromática do genoma humano"
(eucromatina é a parte do genoma em que se concentram os genes). Toma o cuidado de chamar
de "seqüência quase completa" a
nova transcrição do genoma, embora tenha ultrapassado a meta
de 1 erro em 10 mil letras transcritas, atingindo 1 em 100 mil.
Não é por acaso, assim, que o artigo de comentário publicado no
mesmo número da revista defina
como "fim do começo" a nova
realização. Seu autor, Lincoln
Stein, do Laboratório de Cold
Spring Harbor (EUA), afirma que
"leitores podem ser desculpados
por ficarem um pouco confusos
com o [novo] anúncio".
Stein termina por reconhecer
que o genoma, a cada nova releitura, se revela muito mais complexo do que na visão tradicional,
que punha toda a ênfase nos genes. Com apenas 20 mil ou 25 mil
deles, é impossível explicar o repertório de mais de 100 mil proteínas da espécie humana. Ganham cada vez mais importância,
assim, as funções reguladoras de
seqüências não-codificantes, que
se encontram fora dos genes.
"Ao seqüenciar o genoma humano, os pesquisadores já galgaram montanhas e percorreram
uma estrada longa e sinuosa", escreve Stein, mantendo a habitual
retórica genômica.
"Mas estamos apenas no fim do
começo: à frente está uma nova
cadeia de montanhas, que precisaremos mapear e explorar enquanto tentamos entender como
todas as partes reveladas pela seqüência do genoma trabalham
juntas para produzir vida."
Dito de outra maneira: o genoma ainda vai dar muito o que pesquisar.
Estocada em Venter
A publicação conjunta das seqüências do consórcio e da Celera, em fevereiro de 2001, foi considerada na época uma vitória técnica de Craig Venter. O PGH tem
sua vingança agora, três anos e
meio depois, com outro artigo na
edição de hoje da "Nature" afirmando que o método empregado
por ele tem problemas sérios.
Venter criou uma técnica de seqüenciamento muito mais rápida
e barata, apelidada de "shotgun"
(espingarda cartucheira). Como a
analogia implícita no nome sugere, ela consiste em estilhaçar várias cópias do genoma inteiro em
milhões de seqüências curtas. Os
fragmentos são então soletrados
em paralelo e a seqüência final,
montada com auxílio de programas de computador.
O PGH seguia método diverso,
baseado num mapeamento prévio seguido de transcrição letra
por letra. A montagem final seria
feita tomando o mapa como guia.
Mais lento, porém mais confiável,
diziam os adversários de Venter.
Veredicto
O artigo de Xinwei She e colaboradores na "Nature" de hoje lhes
dá razão. Ele conclui que o método de Venter se dá mal com inúmeros trechos duplicados do genoma que compõem 5%-6% da
eucromatina, omitindo-os da seqüência final. Com isso, o genoma
montado pela Celera teria passado batido por 36 genes e deixado
escapar parcialmente outros 67.
Embora a seqüência do PGH esteja longe de completa, essa análise sustenta que a técnica apressada da Celera ficou ainda mais longe da perfeição.
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