São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

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Micro/Macro

Dos céus à Terra

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Quando era costumeiro olhar para os céus, algo que nossas vidas essencialmente urbanas tornam cada vez mais difícil, era possível ler mensagens, reais ou imaginadas, que ligavam, de alguma forma, nossas existências efêmeras ao resto do cosmo. Quem nunca fez um pedido após ver uma estrela cadente, ou fantasiou o que poderia haver além de um arco-íris?


Hoje não olhamos para os céus com a mesma reverência. E isso é uma pena


A Estrela de Belém, anunciante da vinda de Jesus Cristo, é, talvez, um dos símbolos mais conhecidos dessa relação mágica que tínhamos com os céus. Ela surgiu para indicar o local da manjedoura para os reis magos, astrólogos talvez, que sabiam, portanto, interpretar as mensagens celestes. O pintor italiano Giotto, no início do século 14, representou a estrela como um cometa: a passagem do cometa Halley alguns anos antes havia causado um verdadeiro furor na Europa, já que ocorreu perto da virada do século, uma coincidência que, para muitos, significava um prenúncio do fim dos tempos. Se os céus eram a morada de Deus e sua corte de anjos, o que aparecia nas alturas vinha carregado de significado religioso. De certa forma, os céus eram uma espécie de pergaminho onde Deus escrevia suas mensagens. Fosse a chegada do Messias ou o fim da Terra, ou ambos, como deixavam claro os textos bíblicos, seriam anunciados nos céus.
Ninguém sabe ao certo se a Estrela de Belém foi ou não um fenômeno astrofísico. Inúmeros textos foram escritos especulando que talvez fosse mesmo um cometa, ou uma explosão estelar, algo que pode ocorrer quando uma estrela chega ao fim de seus dias.
Talvez não tenha existido, tenha sido criada para dar um significado cósmico-religioso ao nascimento de Cristo. Afinal, os Evangelhos foram escritos décadas após a sua morte. O que é claro é que hoje não olhamos para os céus com a mesma reverência. E isso é uma pena.
Ao nos distanciarmos dos céus, nos distanciamos de nossas origens e, por conseqüência, de nós mesmos. Esquecemos que viemos todos das estrelas, literalmente. Esquecemos que todos os elementos químicos que compõem nossos corpos, nosso planeta e tudo à nossa volta originaram-se em estrelas que desapareceram há bilhões de anos, espalhando seus restos mortais -a matéria que existe no Sistema Solar, do carbono ao urânio- como se semeassem um jardim.
Esquecemos que a vida só é possível porque o Sol supre a energia que a alimenta. Sabemos hoje que nossa matéria veio de estrelas vizinhas já extintas e que a energia que a anima vem de outra, o Sol. Existimos por causa disso, por causa dessa ligação entre a matéria e os céus.
Algumas pessoas acham que entender os céus, explicá-los através da ciência, é tirar sua mágica. Esse tipo de critica não é novidade: os poetas românticos do século 19, por exemplo, achavam que ao explicar um arco-íris como sendo resultado da difração da luz solar por gotas geladas d'água em suspensão na atmosfera, sua beleza ia embora, difratada pela razão. Mas será? Imagine essas gotas geladas, pequenos prismas cristalinos flutuando pelo céu, incontáveis diamantes recebendo a luz do Sol, separando-a em suas freqüências visíveis, trabalhando juntos para criar um fenômeno de incrível beleza. Será que o arco-íris ficou mais feio? Eu diria que ficou mais bonito. Ao entendê-lo, nos aproximamos dele. Sua beleza nos inspira a entender ainda mais. E, quanto mais entendemos, mais bonitas as coisas ficam. Essa é a poesia da ciência.

Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"


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