São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

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Ciência em Dia

Resistoma contra os micróbios assassinos

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Depois do genoma, do proteoma, do transcriptoma e do metaboloma, a tecnobiologia lança mais um neologismo: resistoma. Desta vez, no entanto, em lugar de esperanças exageradas nos superpoderes da biologia molecular, um pesadelo se esconde por trás do vocábulo inventado. O que ele anuncia é uma tentativa de organizar os recursos da ciência humana contra as armas de destruição em massa manejadas pelos micróbios.
O pesadelo se chama resistência a antibióticos, lado escuro da força antimicrobiana descoberta em 1928, com a penicilina. Depois viriam a estreptomicina, em 1943, e uma longa série de compostos químicos capazes de matar micróbios, como bactérias e fungos. Começava uma nova era da medicina, em que a humanidade podia sonhar com o controle de flagelos ancestrais, como a tuberculose.


De 480 microrganismos isolados numa amostra de solo, cada um era resistente a no mínimo seis antibióticos


Muitos germes são verdadeiras máquinas de sobreviver, tendo ocupado a Terra milhões de anos antes dos seres humanos. Seu império contra-atacou. Cada novo antibiótico encontrado ou sintetizado pela tecnologia humana matava a maioria dos micróbios, mas ao mesmo tempo selecionava uns poucos imunes ao veneno, que se multiplicavam e passavam a dominar a cena. Surgiram as infecções resistentes que hoje assombram enfermarias de hospitais.
O que pouca gente sabe é que muitos antibióticos são produzidos pelos próprios micróbios, como germes do solo. Serviram, por isso, de fonte de inspiração para criar vários agentes químicos antimicrobianos. Uma equipe da Universidade McMaster (Canadá) resolveu, no entanto, fazer um levantamento entre eles não para identificar novos antibióticos, mas sua resistência aos compostos -o tal resistoma, um mapa indicando quais germes podem sobreviver a quais drogas.
O resultado, publicado anteontem no periódico "Science", é um iceberg escuro e pavoroso. De 480 microrganismos isolados numa amostra de solo, cada um era resistente a no mínimo seis antibióticos. Alguns se mostraram capazes de sobreviver a até 20 drogas, inclusive algumas inteiramente sintéticas (como a ciprofloxacina), que não foram copiadas de outros germes pela tecnologia humana.
Muito estranho. Não há vantagem aparente em um micróbio apresentar resistência a substância que não é produzida por outros microrganismos. A hipótese mais provável, levantada na mesma edição de "Science" por Alexander Tomasz, da Universidade Rockefeller (EUA), é que essa resistência tenha sido selecionada pela presença de resíduos de ciprofloxacina no ambiente, decorrente do uso excessivo e descontrolado dessa e de outras drogas.
Há mais, no entanto. A pesquisa canadense indica ainda que essas formas de resistência podem estar se espalhando não só por meio da boa e velha seleção darwiniana, mas por uma espécie de contrabando de armas de destruição em massa: troca de informação genética entre os vários micróbios, fruto da ação de agentes moleculares conhecidos como plasmídeos.
Torça para o resistoma produzir contra-informação suficiente para enfrentarmos o Eixo do Mal. Este, pelo menos, é real.

Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros paradidáticos"Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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