São Paulo, sexta-feira, 22 de fevereiro de 2002

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ARQUEOLOGIA

Pesquisadores americanos dizem que fenômeno surgiu 5.000 anos atrás, época de explosão cultural no Peru

El Niño impulsionou civilização, diz estudo

Divulgação
A Huaca del Sol, pirâmide construída perto da costa peruana pela civilização mochica


CLAUDIO ANGELO
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA

Apesar de não gozar de uma boa fama hoje em dia, o El Niño pode ter sido a chave do sucesso das civilizações que floresceram a oeste da cordilheira dos Andes na pré-história. Cientistas americanos dizem que o fenômeno, que de tempos em tempos enlouquece o clima no planeta, ajudou a criar as condições ecológicas para a explosão demográfica e cultural ocorrida na região a partir de 5.000 anos atrás.
A idéia ganhou reforço hoje, com a publicação de um estudo no qual os pesquisadores datam o começo da ocorrência do El Niño na costa sul-americana. A ferramenta usada na datação é, no mínimo, curiosa: pequenas pedras de cálcio retiradas do ouvido de peixes encontrados em sítios arqueológicos do norte do Peru.
Estudando a composição química das tais pedrinhas, conhecidas como otólitos -uma espécie de prumo, que os peixes usam para se orientar na água-, o grupo liderado pelo antropólogo Fred Andrus, da Universidade da Geórgia (EUA), descobriu que as temperaturas médias da água do Pacífico peruano eram de 3C a 4C mais altas no verão antes de 5.000 anos atrás.
Para precisar a data da mudança climática em águas peruanas, o grupo de Andrus recolheu otólitos de restos de peixes desenterrados nos sítios de Ostra e Siches (veja o mapa à dir.) e os comparou com estruturas retiradas de peixes modernos.
Analisando-os com a ajuda de um laser, Andrus descobriu que a proporção entre um certo tipo de átomo de oxigênio (o oxigênio-18) e o oxigênio normal nos anéis variava entre os peixes antigos e os pescados durante a pesquisa.
"Nós sabemos que a proporção de oxigênio-18 diminui à medida que a temperatura da água aumenta", disse Andrus. Nos otólitos retirados de Siches e Ostra, essa proporção tendia a ser menor.

Variação sazonal
Assim como troncos de árvore, os otólitos crescem em anéis, pela deposição de carbonato de cálcio. Como na espécie estudada isso ocorre duas vezes por ano, a análise permitiu remontar a variação de temperatura entre o inverno e o verão. "Em Siches os verões eram mais quentes. Em Ostra a temperatura era mais alta o ano todo. Parece um detalhe, mas isso tem um impacto profundo na ecologia das reservas pesqueiras das quais se alimentavam as populações pré-históricas", disse o pesquisador à Folha.
A partir de 5.000 anos atrás, em vez de regular, sazonal e previsível, o aquecimento do Pacífico passou a ser irregular e imprevisível, e a durar mais de um ano, padrão típico do El Niño.
Juntamente com a oscilação, outro fenômeno novo entrou em cena: a chamada ressurgência do Pacífico, que faz com que correntes de água fria, ricas em nutrientes do leito oceânico, subam do fundo do mar para a superfície.
"Isso mudou a estrutura das populações de peixe", disse à Folha o arqueólogo Daniel Sandweiss, da Universidade do Maine, co-autor do estudo, publicado hoje na revista americana "Science" (www.sciencemag.org). "Começaram a ocorrer peixes como sardinhas e anchovas, que vivem em cardumes e podem ser pescados com rede", afirmou o arqueólogo.
Coincidentemente, aponta Sandweiss, são restos desses peixes que aparecem nas primeiras construções monumentais do litoral peruano, que têm pouco menos de 5.000 anos de idade.

Senhores do clima
Em arqueologia, a monumentalidade costuma ser associada a sociedades mais complexas. Erguer uma pirâmide de barro, como as existentes no litoral peruano, requer uma mão-de-obra que só pode ser recrutada em sociedades onde há uma grande população (e comida para sustentá-la), classes sociais e divisão de trabalho.
No Peru, esse tipo de sociedade, que começou a se desenvolver no litoral e dependia da pesca, atingiu seu ápice com o surgimento da civilização mochica, no ano 50. Tidos como inventores do Estado na América do Sul, os soberanos mochicas baseavam seu poder na crença religiosa de que eram capazes de controlar o tempo.
"Não estou dizendo que o El Niño tenha provocado o surgimento do Estado teocrático", disse Sandweiss. "Mas ele deve ter sido parte de um processo que culminou com o seu surgimento, levando a à mudança dos recursos marinhos e à ascensão de empreendedores religiosos", afirmou.



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