São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2009

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+Marcelo Leite

A ilha de Charcot


Os sucessivos rompimentos podem ser fruto do aquecimento

Charcot deve voltar à baila nos próximos dias, semanas ou meses. Não o grande Jean-Martin Charcot (1825-1893), mestre de Freud em estudos da histeria no Hospital Sapêtrière de Paris, mas a ilha antártica à qual ainda se prende, por uma delgada língua de gelo, o que sobrou da plataforma de Wilkins, na baía que tem o mesmo nome.
Sem essa âncora, é provável que a plataforma se despedace por inteiro, lançando mais algumas centenas de icebergs no mar de Bellingshausen (onde se originam muitas das frentes frias que alcançam o Brasil). Seguiria assim o destino de outras plataformas de gelo da Antártida Ocidental, como a de Larsen, do outro lado da península Antártica, que perdeu 75% de sua área desde 1995.
Plataformas como essas são tabuleiros de gelo com centenas de metros de espessura que se projetam do continente sobre o oceano. Parte se apoia sobre terra firme, acima do nível do mar, parte sobre o que seria leito marinho, e parte se equilibra sobre água.
Suspeita-se que os sucessivos desprendimentos sejam fruto do aquecimento global.
A Antártida Ocidental e a península estão entre as áreas do globo terrestre que mais se aqueceram nas últimas décadas. A água congelada nas plataformas despedaçadas acabará derretendo e, com isso, contribuirá para elevar o nível do mar em todos os lugares do planeta.
A plataforma de Wilkins conectava várias ilhas numa superfície de gelo com 14 mil km2, algo como três quartos do Estado de Sergipe. Começou a desintegrar-se para valer há um ano.
Pesquisadores espanhóis a bordo do navio oceanográfico "Hespérides" relataram na terça-feira que a língua de gelo também já se fragmenta.
Com isso, Charcot se revelará como que sempre foi -uma ilha. Cercada de água por todos os lados, e não de gelo.
Antes era um "nunatak", palavra esquimó para cumes de montanhas e de ilhas que conseguem perfurar o gelo e assomar à sua superfície -um pouco como o inconsciente freudiano irrompe na vida psíquica por meio de sonhos, fobias e atos falhos.
A analogia e o nome da ilha não são gratuitos. Ela foi assim chamada por Jean-Baptiste Etienne August Charcot (1867-1936), filho do neurologista, em homenagem ao pai. O moço enterrou toda a fortuna herdada na construção de uma escuna de três mastros, batizada "Français" (francês), e partiu com sua Expedição Antártica Francesa em 1903.
O "Français" quase naufragou na Antártida e terminou vendido à Marinha argentina. Em 1908 Charcot voltou à carga, com o "Pour Quoi Pas?" (por que não?). Em 1910, descobriu o que chamou de Terra de Charcot.
Pesquisas mais recentes indicaram tratar-se de uma ilha -condição latente que o aquecimento global agora se encarrega de revelar em plenitude, com a violência de um sintoma.

 

A coluna publicada na semana passada, "Analfabetos em números", usou termos pesados ("máquina de propaganda" etc.) para referir-me à Secretaria de Imprensa da Presidência da República. Como o objeto da crítica pelo descaso e pela imperícia no trato com estatísticas era o governo todo, e não só a secretaria, e como não é razoável esperar que esta se dedique a desfazer todos os erros do chefe, em retrospecto pode-se dizer que os qualificativos eram desnecessários.
Esta reconsideração é fruto de uma troca de mensagens eletrônicas com o secretário Nelson Breve, cuja íntegra pode ser lida no blog Ciência em Dia (veja endereço logo abaixo).

MARCELO LEITE é autor da coletânea de colunas "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e do livro de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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