|
Próximo Texto | Índice
GENÉTICA
Estudo polêmico sugere que o chamado DNA-lixo pode ter um papel importante no aprendizado e na memorização
Cientistas criam camundongo "estúpido"
SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL
No ano passado, cientistas americanos haviam feito, via alterações genéticas, um camundongo
do tipo "Cérebro", com a cabeça
muito maior do que o normal.
Agora, outra equipe nos Estados
Unidos e no Canadá deu o troco,
produzindo um roedor do tipo
"Pinky", burro como uma porta.
Apesar das aparências, não se
trata de um esforço para criar
uma versão literal do famoso desenho animado "Pinky & Cérebro". Na verdade, o novo estudo,
a ser publicado numa das próximas edições da revista americana
"PNAS" (www.pnas.org), alimenta a polêmica hipótese de que
os trechos do DNA aparentemente inúteis, apelidados pelos geneticistas de DNA-lixo ("junk-DNA"), podem ter relação direta
com o desenvolvimento do
aprendizado e da memória.
Os cientistas "desligaram" um
gene em camundongos com a especificação de uma proteína chamada MBD1. Ela faz parte de uma
família de substâncias cuja função
é grudar uma molécula num gene, bloqueando a sua expressão
(leitura). Em testes anteriores,
pesquisadores já haviam desativado a fabricação de outras proteínas desse tipo, como MBD2,
MDB3, MBD4 e MeCP2.
Os resultados nunca foram
bons para o camundongo. Sem a
MeCP2, tanto roedores quanto
humanos sofrem déficit neurológico (doença conhecida como
síndrome de Rett). Sem a MDB2,
os camundongos têm déficit de
comportamento maternal. Sem a
MDB3, morrem no estágio embrionário. Sem a MDB4, têm falhas no sistema de reparação do
DNA e desenvolvem tumores.
Qual não foi a surpresa dos pesquisadores do Instituto Salk para
Estudos Biológicos, em La Jolla,
Califórnia (EUA), quando seus
camundongos sem MDB1 nasceram aparentemente normais.
A impressão não durou muito.
"Eles vivem normalmente", afirma Alysson Renato Muotri, 28,
pesquisador brasileiro do Salk e
co-autor do estudo. "Mas parecem meio estúpidos."
A avaliação dos animais mostrou que eles tinham déficit de
aprendizado e de memorização,
além de possuir menor densidade
neuronal no hipocampo, região
do cérebro associada a memória.
Perceber estupidez em humanos é muito mais fácil do que em
camundongos, mas os cientistas
garantem que é possível fazê-lo
também com os roedores. Alguns
testes demonstram as habilidades
"intelectuais" dos animais.
"Num dos testes, colocamos o
bicho numa piscina no escuro",
diz Muotri. "Ele não gosta de água
e quer fugir dali, mas só pode fazê-lo por uma plataforma. Um
animal normal procura a plataforma e, numa segunda tentativa,
já vai direto para ela. O camundongo sem a MBD1 não aprende,
não consegue se lembrar de onde
estava a plataforma."
A ação exata da MBD1 que causa essas mudanças ainda não está
clara, mas os pesquisadores têm
uma sugestão polêmica. Eles
acham que a MBD1 é justamente
a proteína que bloqueia um estranho efeito do DNA-lixo que faz
com que sequências pulem de
uma parte a outra do genoma
-coisa que os cientistas chamam
de retrotransposons, ou DNA-egoísta, um tipo de DNA-lixo.
Greve de lixeiros
É como se a MDB1 fosse a líder
sindical que convencesse os "lixeiros" do DNA-lixo -responsáveis pelo transporte de trechos supostamente "inúteis" do DNA-
a fazer greve. Sem a MDB1, os lixeiros continuam trabalhando
sem parar. Foi o que observaram
os cientistas em estudos com
chips de DNA. Os retrotransposons estavam à toda, saltando o
tempo todo. Por alguma razão
misteriosa, essa bagunça do
DNA-lixo prejudica funções de
memorização, aprendizado e fabricação de neurônios.
A idéia ainda é bastante controversa. "Nós tentamos publicar isso como o destaque do estudo,
mas a "Nature" recusou de cara",
conta Muotri. "Tivemos de rescrever, com um outro enfoque,
para publicá-lo na "PNAS"."
Apesar disso, o pesquisador
brasileiro acredita que começam
a emergir as primeiras evidências
de ligação entre o DNA-lixo e o
desenvolvimento de um organismo. E o grupo do Salk parece estar
em boa companhia.
"Essa idéia que defendemos
agora já foi levantada pelo próprio Crick, em 1982", diz Muotri.
Francis Crick foi um dos decifradores da estrutura da molécula de
DNA, em colaboração com James
Watson, há 50 anos.
Próximo Texto: Panorâmica - Política científica: "Nature" destaca ciência do Brasil em editorial Índice
|