São Paulo, domingo, 24 de abril de 2011

Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

No ártico com a Nasa

Folha acompanha missão da agência espacial americana para medir o derretimento do manto de gelo da Groelândia

Michael Studinger/Nasa
Frente da geleira Gyldenlove, no sudeste da Groelândia

CLAUDIO ANGELO
ENVIADO ESPECIAL À GROENLÂNDIA

Faz 28ºC negativos quando saio do hotel e começo uma penosa marcha na neve em direção à base aérea de Kangerlussuaq, Groenlândia. A umidade em meus cílios congela. O vapor da respiração forma uma crosta de gelo nos óculos e embaça a visão. O vento fere o menor pedaço de pele descoberta. É uma quarta-feira de abril, plena primavera, e a pergunta é inevitável: que raio de aquecimento global é esse?
Poucas horas depois, a bordo de um avião Lockheed P-3 da Nasa, a glaciologista Lora Koenig me chama à janela e aponta um buraco azulado na imensidão branca 5.000 metros abaixo. "Está vendo? Aquilo é um moulin. É por onde a água escorre no verão". Estamos sobrevoando o manto de gelo da Groenlândia, a calota polar que derrete mais rápido no mundo. O tal moulin, que leva água do degelo da superfície até a base do manto, não deveria estar ali. Não deveria haver degelo naquele lugar. É este o raio do aquecimento global.
Koenig integra um grupo de 30 cientistas que está passando a gélida primavera do Ártico fazendo sobrevoos a bordo do P-3 para medir a perda anual de água pelo manto groenlandês.
A operação, de US$ 10 milhões, é conhecida como Ice Bridge, e leva o maior conjunto de instrumentos que já sobrevoou os polos. Desde 2009, a missão examina o Ártico com radares e altímetros a laser.
Esses instrumentos, conhecidos pela sigla ATM, são capazes de medir a elevação da superfície com uma precisão de 10 cm. Comparando as medições ano após ano, é possível estimar quanto o manto "emagreceu".
Essa informação é crucial para saber o que realmente interessa ao cidadão comum: quanto o degelo groenlandês contribui com a elevação global do nível do mar, e de quanto ela será.
A previsão do IPCC, o painel do clima da ONU, é que o oceano possa subir até 60 cm no fim do século devido ao degelo das geleiras polares, continentais e à expansão térmica (água quente ocupa um volume maior).
O problema é que o relatório do painel foi escrito na época em que as geleiras da Groenlândia começaram acelerar fortemente. Ou seja, os modelos climáticos que o basearam não fazem uma previsão adequada do degelo.
Estudos publicados desde então têm mostrado que a Groenlândia perde 250 bilhões de toneladas de água por ano. Por enquanto, isso corresponde a uma elevação anual modesta dos mares no globo: meio milímetro.
Essa taxa pode se manter ou acelerar mais -o que daria uma elevação de 1 m em 2100. "Ainda não dá para prever o que acontecerá daqui a 30 anos", diz o geofísico alemão Michael Studinger, um dos chefes da operação da Nasa.
"O que justifica a Ice Bridge é a coleta de dados que possam alimentar os modelos de nível do mar", afirma.

CIÊNCIA POLÍTICA
Studinger insiste em que está no Ártico apenas "para coletar dados", não para fazer pesquisa climática. Esse campo da ciência está na berlinda nos EUA desde o ano passado, quando os republicanos ganharam a maioria na Câmara. Vários deles -como o presidente da Casa, John Bohmer-, duvidam da mudança climática.
Porém, outro líder da Ice Bridge, John Sonntag, já começou a interpretar os dados coletados.
Ele detectou nas imagens de ATM rebaixamentos em 16 de 25 geleiras avaliadas. Algumas delas afinaram mais de 30 m entre 2009 e 2010.

MARCO ZERO
O alvo do P-3 da Nasa naquela quarta-feira fria era a geleira de Jakobshavn, vizinha à cidade groenlandesa de Ilulissat.
Até 15 anos atrás, Jakobshavn devia sua fama a uma curiosidade mórbida: foi dali que saiu o iceberg que afundou o Titanic, em 1912.
Nos anos 1990, porém, ela começou a atrair muitos cientistas por seu derretimento acelerado. Na última década, Jakobshavn recuou 15 km, o que a torna uma espécie de "marco zero" do aquecimento da Terra.
As mudanças ali são tão rápidas que a Ice Bridge foi obrigada a expandir sua área de varredura na região da geleira. "Descobrimos que o afinamento se espalhou para além da região que nós costumávamos observar", diz Studinger. "Agora me diga que não tem alguma coisa acontecendo."

LAGOS
Por vários quilômetros ao longo do caminho de Jakobshavn, o manto de gelo é uma vasta planície, ora branca e enrugada, ora azulada e cheia de fendas. Aqui e ali aparecem moulins, marcas semelhantes a canais e superfícies arredondadas e perfeitamente planas.
Parecem lagos. E são: trata-se de poças de degelo, formadas no verão -e que também não deveriam estar num local tão alto.
Nos últimos anos, elas têm surgido em tal quantidade e extensão que o governo da Dinamarca limitou o período em que aventureiros podem cruzar a Groenlândia a pé.
Neste ano, a Nasa começou a detectar o que parecem ser poças de degelo em lugares considerados bizarros: a 10 metros sob a superfície.
"Eu voo aqui há três anos e confesso que nunca tinha visto isso", disse Ben Panzer, um doutorando em engenharia da Universidade do Kansas em Lawrence, que percebeu as formas estranhas em imagens de radar.
Lora Koenig se acautela em explicar essas superfícies misteriosas. "Essas podem ser poças normais que foram soterradas pela neve. Ainda precisamos de mais dados."
Mas o engenheiro do Kansas mal pode esperar para algum cientista estudar suas imagens.
"Alguém bem podia batizá-los de 'lagos Panzer'", sorri o engenheiro.


Próximo Texto: Sensores flagram 'dieta' forçada da Groenlândia
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.