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MARCELO LEITE
Toda quimera será investigada
No Reino Unido, ao contrário do Brasil, o debate público é farto
"É
lógico que [...] células híbridas nunca serão transferidas para seres humanos, mas elas permitirão que se avance muito nas pesquisas, poupando um
material precioso, que são os óvulos
humanos. E aí eu pergunto: o que há
de errado nisso?"
A questão foi lançada no último dia
8 por Mayana Zatz, bióloga e pró-reitora de Pesquisa da USP, em sua coluna "Transcrições", no portal G1. Surpresa: só 16 leitores haviam respondido até quarta-feira. Um espelho do debate público no Brasil.
No Reino Unido, as coisas são diferentes. Depois de amanhã, a questão
será debatida por quem se interessar
no Hotel Jurys de Londres, das 18h às
20h. Qualquer pessoa poderá fazer
perguntas a cinco especialistas (um
pesquisador de células-tronco, um religioso anglicano, uma bioeticista,
uma representante de grupo de apoio
a pacientes de Parkinson e um colaborador de jornal católico).
Não há notícia de algo parecido por
aqui, nem de uma organização como a
Agência de Fertilização e Embriologia
Humanas (HFEA, na abreviação em
inglês), que promove a audiência pública. O encontro não é deliberativo,
mas de informação; uma das etapas do
processo de decisão que começou em
novembro de 2006 e termina em setembro deste ano.
Em novembro, a HFEA havia recebido dois pedidos de autorização para
pesquisadores produzirem embriões
e deles derivar células-tronco para estudo. Dada a carência de óvulos humanos, porém, os cientistas propunham empregar gametas femininos
de animais, como vacas.
Funcionaria assim: retira-se o núcleo de um óvulo de vaca e funde-se
essa célula desnucleada com uma célula humana ou seu núcleo (onde ficam os cromossomos, portanto o patrimônio genético). Foi o processo
usado para fabricar a ovelha Dolly.
Só que, no caso, o resultado não seria exatamente um clone, e sim um híbrido de gente com gado vacum. Uma
quimera. Não para ser implantada
num útero e levada a termo, como se
apressam a esclarecer cientistas "éticos", mas para ser desfeita e originar
uma linhagem de células-tronco para
uso em pesquisa básica.
Para biotecnólogos pode soar como
coisa normal, mas pergunte para
quem está ao seu lado. Ciente do potencial de controvérsia, a HFEA lançou em abril um documento para discussão ("Híbridos e Quimeras",
www.hfea.gov.uk/docs/HFEA_Final.pdf) mapeando vantagens, desvantagens, potencial e dilemas da
idéia. Pôs na internet um questionário
para o público reagir ao texto. Agora
realiza o encontro e em setembro decidirá se autoriza ou não a pesquisa.
A Academia de Ciências Médicas
britânica reagiu há uma semana, publicando o relatório "Embriões Interespécies"
(www.acmedsci.ac.uk/
download.php?file=/images/pressRelease/
interspe.pdf). Nele se
apontam as várias dificuldades e expectativas com a pesquisa de células-tronco e defendem-se abertamente as
quimeras, desde que sob supervisão
da HFEA: "... o uso de oócitos [óvulos]
animais representa uma avenida válida e potencialmente importante para
superar essas limitações e fazer avançar a ciência da TNCS e das células-tronco embrionárias humanas".
No documento-base da HFEA, a
presidente Shirley Harrison explica:
"Não queremos atrasar desnecessariamente a pesquisa. Ao contrário,
queremos que a pesquisa prospere.
Mas ela só pode fazer isso num ambiente de apoio e confiança do público, algo que tem longa tradição no
Reino Unido".
Por aqui, como se sabe, não gostamos de tradição.
MARCELO LEITE é autor do livro "Promessas do Genoma"
(Editora da Unesp, 2007) e responsável pelo blog Ciência
em Dia ( www.cienciaemdia.zip.net ).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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