São Paulo, domingo, 24 de junho de 2007

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MARCELO LEITE

Toda quimera será investigada

No Reino Unido, ao contrário do Brasil, o debate público é farto

"É lógico que [...] células híbridas nunca serão transferidas para seres humanos, mas elas permitirão que se avance muito nas pesquisas, poupando um material precioso, que são os óvulos humanos. E aí eu pergunto: o que há de errado nisso?" A questão foi lançada no último dia 8 por Mayana Zatz, bióloga e pró-reitora de Pesquisa da USP, em sua coluna "Transcrições", no portal G1. Surpresa: só 16 leitores haviam respondido até quarta-feira. Um espelho do debate público no Brasil.
No Reino Unido, as coisas são diferentes. Depois de amanhã, a questão será debatida por quem se interessar no Hotel Jurys de Londres, das 18h às 20h. Qualquer pessoa poderá fazer perguntas a cinco especialistas (um pesquisador de células-tronco, um religioso anglicano, uma bioeticista, uma representante de grupo de apoio a pacientes de Parkinson e um colaborador de jornal católico).
Não há notícia de algo parecido por aqui, nem de uma organização como a Agência de Fertilização e Embriologia Humanas (HFEA, na abreviação em inglês), que promove a audiência pública. O encontro não é deliberativo, mas de informação; uma das etapas do processo de decisão que começou em novembro de 2006 e termina em setembro deste ano. Em novembro, a HFEA havia recebido dois pedidos de autorização para pesquisadores produzirem embriões e deles derivar células-tronco para estudo. Dada a carência de óvulos humanos, porém, os cientistas propunham empregar gametas femininos de animais, como vacas.
Funcionaria assim: retira-se o núcleo de um óvulo de vaca e funde-se essa célula desnucleada com uma célula humana ou seu núcleo (onde ficam os cromossomos, portanto o patrimônio genético). Foi o processo usado para fabricar a ovelha Dolly. Só que, no caso, o resultado não seria exatamente um clone, e sim um híbrido de gente com gado vacum. Uma quimera. Não para ser implantada num útero e levada a termo, como se apressam a esclarecer cientistas "éticos", mas para ser desfeita e originar uma linhagem de células-tronco para uso em pesquisa básica.
Para biotecnólogos pode soar como coisa normal, mas pergunte para quem está ao seu lado. Ciente do potencial de controvérsia, a HFEA lançou em abril um documento para discussão ("Híbridos e Quimeras", www.hfea.gov.uk/docs/HFEA_Final.pdf) mapeando vantagens, desvantagens, potencial e dilemas da idéia. Pôs na internet um questionário para o público reagir ao texto. Agora realiza o encontro e em setembro decidirá se autoriza ou não a pesquisa.
A Academia de Ciências Médicas britânica reagiu há uma semana, publicando o relatório "Embriões Interespécies" (www.acmedsci.ac.uk/ download.php?file=/images/pressRelease/ interspe.pdf). Nele se apontam as várias dificuldades e expectativas com a pesquisa de células-tronco e defendem-se abertamente as quimeras, desde que sob supervisão da HFEA: "... o uso de oócitos [óvulos] animais representa uma avenida válida e potencialmente importante para superar essas limitações e fazer avançar a ciência da TNCS e das células-tronco embrionárias humanas". No documento-base da HFEA, a presidente Shirley Harrison explica: "Não queremos atrasar desnecessariamente a pesquisa. Ao contrário, queremos que a pesquisa prospere. Mas ela só pode fazer isso num ambiente de apoio e confiança do público, algo que tem longa tradição no Reino Unido".
Por aqui, como se sabe, não gostamos de tradição.


MARCELO LEITE é autor do livro "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e responsável pelo blog Ciência em Dia ( www.cienciaemdia.zip.net ). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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