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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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Cornetas são a obsessão de Niles Eldredge, que encontra na sua variedade apoio para a teoria sobre o ritmo da evolução que criou com Stephen Jay Gould

EQUILÍBRIO PONTUADO

Mike Segar/Reuters - 5.dez.2000
Trompete de Miles Davis vai a leilão na Christie's; instrumento é a versão menos enrolada das cornetas


Gabrielle Walker
da "New Scientist"

Existem duas paredes na vida de Niles Eldredge. A parede pública está exposta no Museu Americano de História Natural, em Nova York. Eldredge a chama de "a parede da vida". Os mil espécimes individuais ali expostos cobrem um lado inteiro do salão da biodiversidade do museu, estendendo-se por mais de 30 metros, do chão até o teto. A parede contém fungos, esponjas, cnidários, rotíferos, besouros, musgos e plantas. Os artrópodes, favoritos de Eldredge, se estendem numa curva em estilo Lewis Carroll que abrange desde escorpiões e aranhas até uma sucessão de lagostas, chegando a caranguejos espetaculares com dois metros de envergadura. Um tubarão-martelo persegue um cardume de peixes enfeitados com listras coloridas. E alguns flamingos batem as asas ao lado de um modelo de lula gigante, cujos tentáculos se estendem por seis metros.
Eldredge escolheu essas criaturas para representar cerca de 10 milhões de espécies existentes na Terra. Sua parede está exposta há quase cinco anos, mas ele ainda sente prazer em passar por ela a caminho de sua sala de trabalho, situada nos andares superiores do museu.
A outra parede de Eldredge fica num ambiente mais reservado: sua casa na zona rural de Nova Jersey (EUA). Também ela é repleta de espécimes, mas são espécimes de tipo musical, não biológico: a parede abriga sua coleção de mais de 500 cornetas ("primas" menores e mais compactas do trompete). Mais de cem desses instrumentos estão pendurados em fileiras, e outros estão expostos em caixas abertas ou sobre mesas.
A diversidade de formas entre as cornetas é extraordinária. Algumas delas têm duas válvulas; outras, três. Elas são prateadas ou douradas, polidas ou manchadas, simétricas ou não. Algumas são robustas e chatas, outras alongadas, e outras ainda possuem curvas. Foi essa diversidade que chamou a atenção de Eldredge e o levou ao que ele descreve como "mania de colecionar". Cornetista amador desde o colégio, ele gosta de tocar um ou outro desses instrumentos para diversão.
Eterno biólogo, Eldredge não resistiu à tentação de organizar suas cornetas segundo relações "taxonômicas" de forma e estilo, fabricante e data. Até pouco tempo atrás, porém, conservava seu hobby e seu trabalho inteiramente separados. Durante o dia, estudava os trilobites (artrópodes antigos que apareceram no registro fóssil mais de 500 milhões de anos atrás), deduzindo sua história evolutiva pela maneira como suas formas foram se modificando no tempo. À noite e nos finais de semana, vasculhava mercados de pulgas ou surfava a eBay para preencher os vazios da coleção de cornetas.
Alguns anos atrás, enquanto sonhava acordado montado num elefante em Botsuana, Eldredge finalmente se deu conta da conexão entre seu trabalho e seu hobby.
Na década de 1970, enquanto colaborava com o falecido Stephen Jay Gould, ele tinha utilizado os trilobites para apresentar a teoria do "equilíbrio pontuado", que sugere que a evolução se dá aos trancos e barrancos, começando, parando e recomeçando outra vez. Os pesquisadores argumentavam que as espécies são notavelmente estáveis, razão pela qual o registro fóssil revela longos períodos de estagnação -mas também períodos de evolução acelerada nos quais aparecem muitas espécies novas, várias vezes como resultado de grandes mudanças ecológicas. "Eu sabia que havia períodos de estase no desenvolvimento das cornetas, e também períodos de radiação e inovação", diz Eldredge.


Eldredge quer contestar o "desígnio inteligente" dos criacionistas, para quem o sentido da evolução é predeterminado


Era mais do que uma curiosidade à-toa. Eldredge estava ansioso por contestar um subproduto do criacionismo conhecido como "desígnio inteligente". Esse movimento busca destronar Darwin, afirmando que o rumo da evolução é determinado por uma divindade que tem intenções e objetivos. Eldredge se irritara em especial quando os partidários dessa teoria declararam, erroneamente, que o trabalho dele sobre o equilíbrio pontuado enfraquecia a teoria de Darwin. Ele percebeu que sua casa continha os meios para dar uma réplica perfeita. Colecionara um sistema inteiro que, sem dúvida alguma, "evoluíra" graças ao desígnio inteligente e proposital. Tudo o que ele precisava fazer era analisar as formas de suas cornetas, ao estilo do que fazia com os trilobites, e ver se os resultados guardavam alguma semelhança com árvores evolutivas da vida real ou se o desígnio inteligente criava padrões distintos. Embora as cornetas sejam primas pobres no mundo dos metais de hoje, houve época em que eram muito mais tocadas. Em certo momento do século 19 elas quase expulsaram o trompete da orquestra, e foi apenas quando Louis Armstrong declarou sua preferência, na década de 1920, que as cornetas começaram a perder espaço no jazz. A corneta tem uma cavidade interna mais cônica do que o trompete, o que lhe confere um som mais doce. Mas o comprimento total do tubo é o mesmo, e as cornetas só aparentam ser menores porque sua tubulação é mais enrolada. E foi desse enrolar que surgiram as inovações evolutivas do mundo das cornetas. Em princípio, qualquer instrumento de metal com uma tubulação de comprimento determinado pode ser enrolado de diversas maneiras. Mas, por algum motivo, instrumentos como o trompete e a trompa mantiveram uma forma mais ou menos única desde o início. O mesmo, entretanto, não aconteceu com a corneta. Com 1,4 metro de tubo com o qual brincar, os fabricantes de cornetas passaram boa parte do século 19 enroscando e serpenteando seus instrumentos. Entre 1825, ano em que foi inventada a corneta, e 1875, quando ela praticamente assumiu sua forma moderna final, ocorreu o equivalente a uma explosão cambriana musical. Novas válvulas, curvas e ramais deram lugar à gloriosa profusão de formas de cornetas que hoje enfeitam a sala de música de Niles Eldredge.

Árvore de cornetas
No ano passado, Eldredge pôs essas formas todas à prova. Primeiro, reuniu um conjunto representativo de 36 cornetas como amostra. Em seguida, selecionou 16 instrumentos por suas inovações: por exemplo a disposição das válvulas, o lugar onde era posicionado o cone. Em seguida, passou todos os dados pelo programa de computador filogenético que utiliza para seus trilobites. Como sempre, ele pediu ao programa que apresentasse todas as árvores evolutivas possíveis e depois as reduzisse ao "melhor palpite". O que Eldredge constatou deveria horrorizar qualquer partidário da teoria do desígnio inteligente. Se os fósseis fossem, como as cornetas, produtos de um desígnio, então trocar um pelo outro faria pouca diferença em termos das árvores evolutivas produzidas. Mas, exatamente como Eldredge suspeitara, os padrões atuais não se pareciam em nada com os de seus trilobites. Isso acontece porque no mundo vivo existem basicamente apenas duas maneiras pelas quais uma criatura multicelular pode obter uma característica: evoluindo na geração atual ou herdando a característica de uma geração anterior. Mas a evolução das cornetas acontece de maneira bem diferente. A evolução cultural é acompanhada da capacidade de cooptar inovações quando existe esse desejo. Várias vezes, quando as cornetas de uma parte da árvore evolutiva adquiriam de seus fabricantes uma inovação útil, os projetistas que trabalhavam com instrumentos de outros ramos da árvore simplesmente copiavam a idéia. Mesmo instrumentos relativamente primitivos acabavam por incorporar a boa inovação. "Qualquer coisa inventada posteriormente pode ser aplicada a coisas anteriores, de maneira retroativa", diz Eldredge. "Basicamente, é o caos." As primeiras cornetas ostentavam válvulas criadas pelo berlinense Heinrich Stölzel, que permitiam que o ar passasse diretamente pelo corpo da válvula em seu percurso pelas curvas da corneta. As válvulas de Stölzel funcionavam bem, mas suas paredes precisavam ser finas e elas tendiam a vazar. Além disso, um ramal de tubulação lateral fazia as válvulas ficarem ligeiramente desalinhadas. E, sem qualquer razão aparente, o cone das cornetas ficava do lado direito. Depois, no início dos anos 1840, surgiu uma válvula mais robusta batizada em homenagem a seu inventor, o parisiense François Périnet. As válvulas de Périnet funcionam de maneira diferente: o ar passa por dutos horizontais na válvula, que conecta partes diferentes da tubulação, dependendo de a válvula ser apertada ou solta. Com isso, os projetistas passaram a fazer experimentos com novos formatos, mudando o ramal lateral incômodo para outro lugar e alinhando as válvulas corretamente. Para deixar tudo ainda melhor, jogaram o cone à esquerda, tornando o instrumento mais fácil de segurar. Embora essas modificações tenham tornado desejáveis os novos instrumentos de Périnet, os Stölzel não entraram em extinção. Sua fabricação era mais barata do que a das cornetas de Périnet, e os grandes fabricantes continuaram a produzi-los pelo preço mais acessível. Mas -e isso é crucial- as cornetas de Stölzel cooptaram as novidades introduzidas por Périnet: inspirados, os fabricantes de modelos Stölzel descobriram como fazer seus instrumentos com o cone à esquerda e as válvulas alinhadas. Com a modificação nas válvulas, esses dois conjuntos de cornetas deveriam ter tomado rumos totalmente distintos, como duas espécies distintas de trilobites. Mas a nova disposição funcionou tão bem que em pouco tempo passou a ser aplicada a todos os modelos, independentemente da origem. Isso significa que as árvores evolutivas das cornetas são totalmente confusas. Em lugar de um conjunto bem arrumado de ramos bifurcados, no qual cada nova espécie emerge de sua antecessora, o que se vê tendem a ser linhas planas das quais emergiram muitos ramos. Na evolução biológica, "raramente se vê todo um grupo de linhas saindo de uma única fonte", diz Eldredge. Mas, nas árvores das cornetas, muitos desenhos diferentes parecem nascer de uma única origem. "Eles contêm muitas inovações tiradas deliberadamente de um ramo e aplicadas a outro", diz Eldredge. E, com isso, torna-se impossível classificá-las em qualquer ordem coerente de antepassados e descendentes.

Criacionistas céticos
Eldredge já levou a descoberta ao "inimigo". Os criacionistas, diz ele, parecem querer adotar a ciência para suas próprias finalidades -logo, por que não utilizar o método científico para demonstrar que a teoria deles é falha? "Já que ninguém pode testar o sobrenatural", diz ele aos criacionistas, "o mínimo que vocês precisam fazer é ter a boa vontade de analisar um sistema que nós sabemos ter sido fruto do desígnio inteligente." E acrescenta: "Trouxe um exemplo para ser visto". Em novembro passado Eldredge fez exatamente isso numa conferência sobre desígnio inteligente no Hillsdale College, em Michigan. Apresentou suas descobertas, e a platéia o recebeu com educação, mas ele admite que não convenceu ninguém. "Quem estava do meu lado continuou do meu lado, e aqueles que estavam contra continuaram assim."
Eldredge se compraz na oportunidade de zombar um pouco do criacionismo, mas não está empreendendo uma cruzada. Ele afirma que fez a pesquisa porque "achou divertido". Mas se sente alarmado diante da ameaça que o lobby criacionista representa para a educação científica, pelo menos nos EUA. "Alguém deveria se levantar e dizer "é possível testar isso aqui" ", diz. "Eu teria prazer em fazê-lo. Eu poderia preparar uma apresentação em PowerPoint para mostrar ao Congresso e dizer "tal coisa pode ser testada e é falsa"."
As descobertas de Eldredge podem também alarmar pesquisadores que aplicam a teoria darwiniana a outras áreas culturais, tais como os rumos complexos dos negócios. Mas a compreensão da verdadeira natureza da evolução cultural pode terminar ajudando esses esforços e não atrapalhando. Trabalhando com o teórico de sistemas Gerrit Broekstra, da Universidade Nyenrode, na Holanda, Eldredge encontrou sinais recentes de que pode ocorrer alguma sobreposição útil entre os hábitos evolutivos da vida, da música e da economia.
Por exemplo, Broekstra acha que o fato de Louis Armstrong ter abandonado a corneta para tocar trompete pode ser um bom exemplo das chamadas "tecnologias de ruptura", que se escondem na periferia dos negócios e, de uma hora para outra, levam tecnologias já comprovadas à extinção. Pode até existir uma conexão com a idéia de que novas espécies surgem nas margens de seu território original, embora Eldredge veja com ceticismo a idéia de que tais criaturas poderiam dominar suas espécies progenitoras, muito menos derrubá-las. Mesmo assim, descreve as semelhanças entre esses domínios separados como "assombrosa".
Enquanto isso, continua a trabalhar com seus espécimes no museu e a colecionar cornetas. Qual das duas paredes ele prefere? "Depende de qual lado da cama eu me levanto pela manhã. Ainda sinto paixão pelo mundo vivo, e descobrir como ele evolui permanece meu objetivo principal", diz. "Mas as cornetas também são uma paixão. Acho que, ao juntar as duas coisas, o que estou querendo é ter tudo na vida."

Tradução de Clara Allain


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