São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2009

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+Marcelo Leite

O vestido verde de Obama


O problema do presidente, agora, é administrar as expectativas


Sinal dos tempos: o vestido verde -amarelo-limão?- de Michelle Obama chamou mais a atenção do que o discurso de seu marido, Barack Hussein. Mas as palavras de Obama chegaram vestidas a caráter, na cor mais adequada para a estação ingrata que se avizinha. O presidente negro desfilou-as com sobriedade quase decepcionante.
Quem aguardava ouvir dele o equivalente retórico dos tailleurs rosa de Jackie ao pé de John F. Kennedy pode ter saído desapontado. Não houve frases como "Não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer por seu país", embora a ideia lá estivesse. Manter o perfil baixo revela sagacidade. Já se disse que o problema de Obama, agora, é conseguir administrar o excesso de expectativas. Lançar mão de um discurso inflamado só as insuflaria.
Tudo foi muito convencional e americano: as várias menções a Deus, o agradecimento de praxe a eleitores e apenas protocolar a George W. Bush, o culto aos heróis de guerra e à ameaça perene do terrorismo. Logo no quinto parágrafo, porém, ao iniciar a parte substantiva do discurso, Obama estabeleceu um vínculo estratégico que introduz a novidade real em seu governo: "Nosso sistema de saúde é oneroso demais, nossas escolas reprovam alunos demais e cada dia traz mais evidência de que a maneira de usarmos energia fortalece nossos adversários e põe em risco nosso planeta".
Obama, presidente de um país obcecado com a ameaça externa a ponto de reeleger Bush, não poderia deixar de referir-se ao inimigo. Poderia, talvez, omitir a questão energética, ponto nevrálgico do "american way of life", e apenas reafirmar de modo genérico a defesa do ambiente. Não o fez. Fez mais: explicitou algo que nem os críticos mais ácidos de Bush se lembram de vincular, quando deploram a invasão arbitrária do Iraque. A saber, que ela nada teve de arbitrária, pois aquele país se encontra na maior província petrolífera da Terra. E lembrou que invadir o Iraque tem o mesmo propósito das tentativas de negar o aquecimento global -manter o petróleo barato no centro do "american way of life".
Bush fez o possível e o impossível para se desvincular desse objetivo estratégico. No capítulo do impossível, pretendeu amordaçar a força mais pujante da sociedade americana, sua comunidade de pesquisa. Negou e fez negar, com afinco, a existência do aquecimento global e a responsabilidade humana por ele.
Aqui, mais uma vez, as palavras de Barack Obama vincularam o que deve ser vinculado: "Vamos reinstaurar a ciência em seu lugar de direito e manejar os poderes da tecnologia para elevar a qualidade dos serviços de saúde e reduzir seus custos. Vamos aproveitar o sol, os ventos e o solo para abastecer nossos carros e movimentar nossas fábricas." Disse mais: "Com velhos amigos e antigos adversários, trabalharemos incansavelmente para reduzir a ameaça nuclear e para afastar o espectro de um planeta em aquecimento". Que sirva de aviso para aqueles interessados em vender energia nuclear como panacéia para combater o aquecimento global.
Por fim, é importante notar que Obama incluiu a curiosidade entre os valores dos quais depende o êxito de sua gente (trabalho duro, honestidade, coragem, equanimidade, tolerância, lealdade e patriotismo). Não curiosidade pelo vestido verde, mas espírito científico, exploratório e inovador. Que não fique só no discurso, como fez boa parte da imprensa.

MARCELO LEITE é autor de "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007).
Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



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