São Paulo, domingo, 25 de março de 2007

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Marcelo Leite

Genomas para quê, mesmo?

Venter e seus imitadores fazem ciência por atacado e sem hipótese

I magine que um artigo científico seja publicado anunciando a identificação genômica de mais de 6 milhões de possíveis proteínas, quase duplicando -de um só golpe- o repertório conhecido dessas peças básicas com que se constroem os organismos. Agora, considere que não saia uma linha sobre ele nos jornais e nas revistas do país.
Sintoma de independência ou negligência do jornalismo científico brasileiro? Sinal de pujança ou desesperança com a genômica, tornada a tecnociência pop por excelência após a conclusão do Projeto Genoma Humano (PGH), seis anos atrás? O artigo foi publicado há 12 dias no periódico científico de acesso aberto "PLoS Biology" (collections.plos.org/plosbiology/gos_2007.php). Na realidade, uma coletânea de textos encabeçada pelo trabalho "A Expedição Sorcerer-2 de Amostragem Global do Oceano: do Atlântico Noroeste ao Pacífico Oriental Tropical". O estudo tem uma lista com 40 autores de seis países, mas o nome que mais importa é o último: J. Craig Venter. Sim, ele, o Grande Patenteador de Genes, Inimigo Número 1 do Genoma Público. O cientista brilhante e empresário improvisado que criou e dirigiu uma companhia para faturar com a informação do genoma humano (coleção de genes da espécie). Com uma penada na "PLoS Biology", Venter lançou no domínio público 7,7 milhões de seqüências de DNA. Elas contêm 6,3 bilhões de letras de DNA, ou o equivalente a dois genomas humanos inteiros.
O acervo resulta de um gênero de pesquisa apelidado de metagenômica: seqüenciamento (soletração) de organismos em bloco, sem preocupar-se com quem é o quê. No caso, as algas e bactérias que Venter filtrou de amostras de água coletadas do Atlântico ao Pacífico, a bordo de seu veleiro, cujo nome significa "feiticeiro(a) 2". Parece hobby, mas é sério. Venter recebeu milhões do Departamento de Energia dos EUA e da Fundação Gordon e Betty Moore (leia-se: Intel) para sua regata garimpeira. Já tinha publicado, três anos atrás, um artigo restrito ao mar dos Sargaços, onde bamburrou mais de 1 bilhão de caracteres de DNA, com 1,2 milhão de candidatos a proteínas.
Mas para que servem tantas proteínas? Aliás, são todas proteínas, mesmo? Ninguém sabe, ainda. Venter acha que vai encontrar, em meio à sopa de letrinhas, a receita de moléculas úteis para a produção de energia limpa e para o saneamento ambiental, por exemplo. Vai precisar de sorte -e muita pesquisa em laboratório, essa "cozinha repugnante em que conceitos são refogados com ninharias", como disse Bruno Latour. Os programas sarados de computador que Venter legou à empreitada genômica só conseguem selecionar candidatos a genes (especificadores de proteínas) em meio à ladainha dos seqüenciadores automáticos de DNA. Confirmá-los e estabelecer sua função são outros 500. Resumindo a ópera, Venter e seus imitadores fazem ciência por atacado e sem hipótese. Alguém diria que não é ciência de verdade. Tecnociência, talvez. Com certeza, uma maneira eficiente de manter exércitos de biólogos moleculares e bioinformatas ocupados e empregados.
Venter pode até bandear-se para o campo do acesso aberto, coisa que não admitia quando formulou o plano de negócios fracassado da Celera Genomics. Sua concepção do genoma, porém, ainda é a de uma massa indistinta de informação por identificar, apropriar e valorizar. O oposto da noção de informação que interessa ao público, se quiserem.


MARCELO LEITE é autor do livro "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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