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Marcelo Leite
Genomas para quê, mesmo?
Venter e seus imitadores fazem ciência por atacado e sem hipótese
I
magine que um artigo científico
seja publicado anunciando a identificação genômica de mais de 6
milhões de possíveis proteínas, quase
duplicando -de um só golpe- o repertório conhecido dessas peças básicas com que se constroem os organismos. Agora, considere que não saia
uma linha sobre ele nos jornais e nas
revistas do país.
Sintoma de independência ou negligência do jornalismo científico brasileiro? Sinal de pujança ou desesperança com a genômica, tornada a tecnociência pop por excelência após a conclusão do Projeto Genoma Humano
(PGH), seis anos atrás?
O artigo foi publicado há 12 dias no
periódico científico de acesso aberto
"PLoS Biology" (collections.plos.org/plosbiology/gos_2007.php). Na
realidade, uma coletânea de textos encabeçada pelo trabalho "A Expedição
Sorcerer-2 de Amostragem Global do
Oceano: do Atlântico Noroeste ao Pacífico Oriental Tropical".
O estudo tem uma lista com 40 autores de seis países, mas o nome que
mais importa é o último: J. Craig Venter. Sim, ele, o Grande Patenteador de
Genes, Inimigo Número 1 do Genoma
Público. O cientista brilhante e empresário improvisado que criou e dirigiu uma companhia para faturar com
a informação do genoma humano (coleção de genes da espécie).
Com uma penada na "PLoS Biology", Venter lançou no domínio público 7,7 milhões de seqüências de
DNA. Elas contêm 6,3 bilhões de letras de DNA, ou o equivalente a dois
genomas humanos inteiros.
O acervo resulta de um gênero de
pesquisa apelidado de metagenômica:
seqüenciamento (soletração) de organismos em bloco, sem preocupar-se
com quem é o quê. No caso, as algas e
bactérias que Venter filtrou de amostras de água coletadas do Atlântico ao
Pacífico, a bordo de seu veleiro, cujo
nome significa "feiticeiro(a) 2".
Parece hobby, mas é sério. Venter
recebeu milhões do Departamento de
Energia dos EUA e da Fundação Gordon e Betty Moore (leia-se: Intel) para
sua regata garimpeira. Já tinha publicado, três anos atrás, um artigo restrito ao mar dos Sargaços, onde bamburrou mais de 1 bilhão de caracteres de
DNA, com 1,2 milhão de candidatos a
proteínas.
Mas para que servem tantas proteínas? Aliás, são todas proteínas, mesmo? Ninguém sabe, ainda. Venter
acha que vai encontrar, em meio à sopa de letrinhas, a receita de moléculas
úteis para a produção de energia limpa e para o saneamento ambiental,
por exemplo.
Vai precisar de sorte -e muita pesquisa em laboratório, essa "cozinha
repugnante em que conceitos são refogados com ninharias", como disse
Bruno Latour. Os programas sarados
de computador que Venter legou à
empreitada genômica só conseguem
selecionar candidatos a genes (especificadores de proteínas) em meio à ladainha dos seqüenciadores automáticos de DNA. Confirmá-los e estabelecer sua função são outros 500.
Resumindo a ópera, Venter e seus
imitadores fazem ciência por atacado
e sem hipótese. Alguém diria que não
é ciência de verdade. Tecnociência,
talvez. Com certeza, uma maneira eficiente de manter exércitos de biólogos moleculares e bioinformatas ocupados e empregados.
Venter pode até bandear-se para o
campo do acesso aberto, coisa que não
admitia quando formulou o plano de
negócios fracassado da Celera Genomics. Sua concepção do genoma, porém, ainda é a de uma massa indistinta de informação por identificar, apropriar e valorizar.
O oposto da noção de informação
que interessa ao público, se quiserem.
MARCELO LEITE é autor do livro "Promessas do Genoma"
(Editora da Unesp, 2007) e responsável pelo blog Ciência
em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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