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São Paulo, quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

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BIOLOGIA MOLECULAR

Pesquisadores dos Estados Unidos encontram função imprevista para moléculas de príon no cérebro

Proteína similar à da vaca louca participa da memória

REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Substâncias cuja ação imita a de um dos mais temidos vilões moleculares do planeta podem ser essenciais para a manutenção das memórias de longo prazo no sistema nervoso. Segundo pesquisadores nos EUA, essa pode ser a função de parentes dos príons que causam o mal da vaca louca e várias doenças graves do cérebro.
A descoberta é relatada em dois estudos na edição de amanhã da revista científica norte-americana "Cell" (www.cell.com).
"Apesar de sabermos um bocado sobre como a memória funciona, não tínhamos idéia clara de qual poderia ser o principal sistema de armazenamento. Esse estudo sugere uma resposta -mas é surpreendente descobrir que uma atividade tipo príon estaria envolvida", diz a bióloga Susan Lindquist, do Instituto Whitehead de Pesquisa Biomédica, em comunicado oficial. Ao lado do neurobiólogo Eric Kandel, da Universidade Columbia, Lindquist coordenou o estudo na "Cell".

Aberrações bioquímicas
Durante muito tempo os príons foram considerados aberrações bioquímicas, por causa da associação com o mal da vaca louca e com seu equivalente humano, a doença de Creutzfeldt-Jacob. A proteína vem em duas versões: a normal, que parece estar envolvida numa série de processos fisiológicos importantes do sistema nervoso, e a patogênica, que causa doenças em humanos e animais.
A diferença está no formato das duas versões. Proteínas dependem dos detalhes de uma complicada estrutura tridimensional para realizar sua função. No príon patogênico, ocorre um erro no processo de "enovelamento" que resulta na estrutura final.
O resultado é que, além de se tornar inútil, a proteína deformada ainda é capaz de influenciar os outros príons da vizinhança a também mudarem de forma. As moléculas rebeldes, então, começam a se juntar em placas no cérebro, arrebentando os neurônios (células nervosas) e levando o doente à morte.
Acontece que, diferentemente do que se imaginava quando o príon dos seres humanos foi descoberto, algumas proteínas da levedura ou fungo microscópico Saccharomyces cerevisiae (usado na fermentação do álcool) também apresentavam o mesmo sistema acoplado de mudança de forma e transmissão da mudança a outras proteínas -só que sem causar doenças.
O assunto continuaria sendo mera curiosidade bioquímica se o pesquisador Kausik Si, aluno de Eric Kandel, não tivesse descoberto um tipo de príon nas sinapses (conexões nervosas) da lesma-do-mar Aplysia californica. Esse molusco é o equivalente do camundongo de laboratório para a neurobiologia, porque seus neurônios enormes permitem um exame detalhado de como os impulsos nervosos são produzidos e transmitidos.
No caso, a proteína CPEB parece estar envolvida no fortalecimento das sinapses, coordenando a produção de proteínas que são utilizadas numa conexão entre o neurônio e outra célula nervosa que já foi usada antes. Dessa forma, imaginam os pesquisadores, forma-se uma sinapse mais duradoura, de longo prazo.

Mudança para melhor
A equipe, querendo estudar como a proteína se comportava, marcou a CPEB com corantes e a inseriu nas leveduras. Para surpresa dos pesquisadores, não só a proteína tendia a reverter para a forma de príon como também parecia conduzir melhor sua função -coordenar a produção de outras proteínas- nesse estado.
"Mostramos que o estado normal da CPEB pode ser o menos ativo, enquanto o estado de príon pode ser o jeito certo para que a proteína desempenhe sua função", resume Kandel. Mas a constatação de que até o príon supostamente "malvado" tem importante função celular traz implicações ainda mais graves.
Os pesquisadores ainda não testaram o modelo em neurônios vivos, mas sugerem que a estimulação de uma sinapse com um neurotransmissor (os mensageiros químicos do cérebro) poderia ativar a transformação da CPEB para a sua forma de príon. "Uma vez que isso acontece, no entanto, a proteína se torna autoperpetuadora e não requer uma sinalização contínua para sua manutenção", escrevem os pesquisadores.
Trocando em miúdos: a estabilidade do príon CPEB, que permaneceria sem ser degradado pelas células por meses ou até anos, seria ideal para guardar memórias nas sinapses por longos períodos de tempo. É essa hipótese que os pesquisadores pretendem investigar a partir de agora.


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