São Paulo, segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

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MEDICINA

Mudança em uma única "letra química" do DNA humano pode aumentar em até cinco vezes risco de ter a doença

Estudo expõe elo genético da hanseníase

REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Pesquisadores brasileiros conseguiram associar, pela primeira vez, alterações no DNA humano a um risco maior de desenvolver hanseníase, a moléstia que no passado era chamada de "lepra" (termo hoje considerado discriminatório). A doença deixou de ser problema há muito tempo nos países ricos, mas ainda afeta 700 mil pessoas por ano no mundo.
Ao lado de colegas no Canadá, na França e na Holanda, eles mostraram que não é preciso muito para que haja um risco mais de cinco vezes maior de contrair a doença -aliás, quase nada. Basta a troca de uma única "letra" química das 3 bilhões que compõem o material genético humano. De quebra, a alteração afeta um gene que também está ligado ao mal de Parkinson, uma doença degenerativa incurável do cérebro.
"Isso mostra quão pouco ainda se sabe sobre uma doença antiqüíssima como essa", disse à Folha o bioquímico Marcelo Távora Mira, da PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Paraná. Mira é o primeiro autor do estudo que sai hoje na versão eletrônica da revista britânica "Nature" (www.na ture.com). Participam também membros da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e do Inca (Instituto Nacional do Câncer), no Rio.
Mira começou o trabalho durante seu doutorado na Universidade McGill, no Canadá, analisando o DNA de doentes do Vietnã que tinham um histórico de hanseníase de família.
A primeira etapa foi tentar encontrar áreas de cromossomos (as estruturas enoveladas que guardam o material genético) que fossem passadas, de pais para filhos, numa proporção maior do que os 50% esperados aleatoriamente. Isso significaria uma possibilidade de que um dado trecho do cromossomo seja mais comum que o normal nas 197 famílias analisadas e, portanto, poderia estar relacionado à doença.

Cromossomo 6
Procura que procura, a equipe conseguiu reduzir seu alvo inicial a um trecho do cromossomo 6. "O problema da técnica é que ela dirige você para uma região com 30, 40 ou 50 genes, que precisa ser vasculhada", explica Mira.
Usando outras técnicas, a equipe voltou a garimpar o DNA dos pacientes vietnamitas e acabou se concentrando numa região de 80 mil pares de bases, ou "letras" químicas, que corresponde a um promotor, ou interruptor genético, de dois genes, o PARK2 e o PACRG. Os promotores controlam quando e como um determinado gene se torna ativo e tem a informação contida nele transformada em proteínas pelas células.
A equipe descobriu que, dentro dessa região genômica, havia uma verdadeira população de alterações de uma só base trocada que estavam associadas à incidência de hanseníase. Essas variações, conhecidas como SNPs (pronuncia-se "snips"; a sigla corresponde a "polimorfismos de nucleotídeo único" em inglês), podem ser o suficiente para alterar a proteína cuja receita está armazenada num gene e, por isso, levar a mudanças sutis, mas potencialmente importantes, na bioquímica do organismo.
Dependendo da presença desses SNPs em um ou ambos os cromossomos de cada pessoa, o risco de ter a doença pode ser de 5,28 vezes a 3,23 vezes maior. No total, 17 SNPs foram mapeadas na população vietnamita.
A equipe decidiu confirmar a associação entre as variantes genéticas e a doença analisando 975 pessoas enfermas e saudáveis da região metropolitana do Rio de Janeiro. "Houve concordância perfeita com 13 dos SNPs da população vietnamita, o que fortalece as nossas conclusões", afirma o biólogo Milton Moraes, do Laboratório de Hanseníase da Fiocruz, que também assina o trabalho.

Diagnóstico e Parkinson
Para Marcelo Mira, o conhecimento sobre o papel dos genes no desenvolvimento da doença não deve levar a novos medicamentos, já que os existentes funcionam muito bem quando a moléstia é diagnosticada a tempo. "O que pode ser feito, por exemplo, em áreas endêmicas, é procurar pessoas susceptíveis e evitar que elas acabem contraindo a doença." O Brasil, aliás, tem o segundo maior número de casos da doença do mundo (cerca de 40 mil ao ano), só perdendo para a Índia.
Por outro lado, a relação do gene PARK2 com a hanseníase e o mal de Parkinson ao mesmo tempo é intrigante e precisa ser mais estudada, de acordo com o bioquímico. Afinal, ambos os males atacam células do sistema nervoso, nas quais o gene está mais ativo, embora a hanseníase seja causada por uma bactéria, a Mycobacterium leprae.
O estudo de Mira teve apoio da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), órgão do governo federal.



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