São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Micro/Macro

Sonhos de uma teoria final

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Qualquer pessoa que já olhou para um céu estrelado e se perguntou de onde veio isso tudo sabe muito bem que, quando nos deparamos com questões relativas às origens, as coisas complicam. Três delas ocupam hoje a atenção de cientistas em todo o mundo: a origem do Universo, a da vida e a da mente. Apesar de serem parte da pesquisa mais avançada em física, biologia e ciências cognitivas, elas são também as questões mais antigas da humanidade.
Antes de serem estudadas por cientistas, eram "respondidas" pelas religiões. As aspas são para lembrar que as respostas religiosas nem sempre estão de acordo, pelo contrário. É só ver as chacinas entre muçulmanos e hindus na Índia e Paquistão ou as Cruzadas (as medievais e a atual), para constatar que a revelação pela fé é uma escolha subjetiva. O que as religiões têm em comum é tentar responder a essas três questões. Em geral (mas não sempre), essas narrativas supõem a existência de um poder sobrenatural, absoluto, que decide criar o mundo, as pessoas e os animais. Todo mito de criação supõe que o Um dá origem à pluralidade das formas existentes.
Em física, a noção de que existe uma unidade fundamental na natureza é expressa pela geometria. Que a matemática é a linguagem usada pelas ciências físicas não é uma novidade. Mas a idéia que todos os fenômenos naturais podem ser reduzidos a um único princípio, baseado na geometria, é. Essa crença tem suas origens em Platão, que acreditava que a verdade só pode ser encontrada no mundo abstrato da razão, habitado por formas geométricas. Segundo ele, a percepção sensorial da realidade é falsa: o único círculo perfeito existe apenas em nossas mentes. Qualquer tentativa de representação do círculo será necessariamente imperfeita.
O platonismo ecoa nas salas dos físicos preocupados com questões sobre origens. Como escreveu Stephen Hawking em "Uma Breve História do Tempo", entender a estrutura geométrica do cosmos é entender a "mente de Deus". A metáfora não é acidente. Deus é o maior dos geômetras.
A física busca padrões ordenados na natureza. Cada padrão tem uma simetria associada. A esfera perfeita, objeto mais simétrico que existe, é sempre a mesma após qualquer rotação. Simetrias existem também nas atrações entre as partículas fundamentais da matéria, embora não seja fácil visualizá-las como no caso da esfera. Essas simetrias definem como as partículas trocam energia entre si. Um físico de partículas descreve o mundo material como sendo composto por partículas que interagem entre si com base em certas leis. Por exemplo, quando partículas interagem, a carga elétrica total é a mesma antes e depois da interação. Essas leis são expressas por simetrias, ou padrões geométricos.
A crença mítica no Um, o criador absoluto, se manifesta na física na crença de que a formulação final das leis que regem as interações entre matéria e força também têm uma formulação única, conhecida como teoria do campo unificado. Hoje, sabemos que existem quatro forças entre partículas. A gravidade e o eletromagnetismo são duas delas. Imagine então que o campo unificado seja um rio majestoso, que vai fluindo em direção ao mar. Na medida que se aproxima do mar, vai se separando, até que, na costa, divide-se em quatro.
Nós vivemos na costa, e percebemos a realidade por causa das quatro forças. Alguns aventureiros nadaram rio acima e encontraram o ponto da primeira das unificações. Até agora, ninguém conseguiu passar desse ponto. Os que tentaram falharam. Mas lendas relatam que a união final existe, que é só continuar nadando contra a corrente, rio acima. A crença na lenda inspira novas expedições. Conforme escreveu Steven Weinberg, um dos que encontraram o ponto onde dois rios se juntam, temos de supor que teremos sucesso. Caso contrário, certamente falharemos".


Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"


Texto Anterior: Artes exatas (e biológicas)
Próximo Texto: Ciência em Dia: Faro fino para tumores
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.