São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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Ciência em Dia

Faro fino para tumores

Marcelo Leite
colunista da Folha

Há um cheiro de Ig Nobel no ar. Para quem não conhece, esse é o nome de um prêmio inventado por pesquisadores dados à pilhéria reunidos na revista "Annals of Improbable Research". Cães treinados para farejar tumores em amostras de urina humana seriam bons candidatos para a cerimônia da entrega do galardão, nesta quinta-feira, mas não vai dar tempo de convidá-los para a festa.
O trabalho em questão, "Detecção Olfativa de Cânceres Humanos por Cães: Estudo de Prova de Princípio", de um grupo do Hospital Amersham e outras instituições britânicas, saiu ontem na conceituada publicação "British Medical Journal", a "BMJ" (bmj.com). Foi distinguido na "BMJ" com um comentário de T.J. Cole, professor de estatística médica do Instituto de Saúde da Criança de Londres.
Apesar de elogiar o experimento como "simples e elegante", Cole parece não ter resistido ao apelo óbvio do humor. Ao pé de seu comentário, declara um "conflito de interesses": é dono de um labrador com pelagem chocolate. Ele abre o texto com uma epígrafe intraduzível da escritora norte-americana Dorothy Parker (1893-1967): "You can't teach an old dogma new tricks" (não se podem ensinar truques novos a um dogma velho, num trocadilho com "dog").
O trabalho é sério, no entanto (assim como esta coluna). Prova disso são os resultados obtidos: um grupo de seis cães de raças e idades diversas, treinados durante sete meses para distinguir amostras de urina de pessoas com câncer de bexiga de amostras de pacientes sem tumores, conseguiu fazê-lo em 41% das vezes, quando submetidos a amostras novas. Isso é quase três vezes mais do que ocorreria ao acaso (em 14% das ocorrências, segundo o artigo).
Tomaram parte no experimento 36 pessoas com câncer. Entre os 108 pacientes do grupo de controle havia homens e mulheres sadios e doentes, mas com patologias diversas de câncer. Cada cachorro tinha de indicar, entre sete amostras, qual provinha de alguém com tumor. O procedimento se repetiu nove vezes com cada animal, ou 54 baterias de testes que resultaram em 22 acertos. Presume-se que tumores produzam compostos voláteis característicos, mas em quantidades diminutas, que o faro aguçado dos cães seria capaz de distinguir.
O comentarista T.J. Cole conta que vários cães implicaram com um dos pacientes do grupo de controle, apontando sua urina como suspeita de câncer de bexiga, embora exames indicassem o contrário. Diante da insistência animal, uma investigação mais profunda revelou que a pessoa tinha um carcinoma, sim -no rim.
Outra revista médica britânica, a "Lancet", aproveitou para pegar uma carona. Ao saber que o artigo de John C.T. Church e colaboradores sairia na "BMJ", distribuiu a jornalistas credenciados duas cartas publicadas sobre o assunto. Uma delas, de 15 de setembro de 2001, narrava o caso do labrador Parker, que de repente deu de cismar com um eczema antigo na coxa do dono. Confiando no faro do cão, voltou ao médico, e um novo exame revelou tratar-se de um carcinoma. A outra carta conta a história de um mestiço de border collie com doberman que invocara com a verruga na coxa de sua dona. Uma biópsia acabou revelando que se tratava de um melanoma maligno, segundo a correspondência -publicada num suspeitíssimo 1º de abril de 1989.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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