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GENÔMICA
Americanos saem na frente e identificam alvo potencial para combate à Xylella, que causa o amarelinho da laranja
Brasil e EUA disputam primazia por bactéria
MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA
O Brasil foi pioneiro ao sequenciar (soletrar) o DNA da bactéria
Xylella fastidiosa, em 2000, mas
corre o risco de ver eventuais frutos práticos desse trabalho serem
colhidos por um grupo rival dos
EUA. A possibilidade surgiu com
a publicação de dois artigos científicos que haviam passado despercebidos para a imprensa leiga,
no Brasil, mas não para os cientistas -entre os quais causaram
surpresa, para dizer o mínimo.
Alguns dos autores do primeiro
trabalho, na revista "PNAS" de 17
de setembro, como Paul Predki,
estão entre os pesquisadores que
tentaram atravessar a contratação
de brasileiros para sequenciar outra cepa da bactéria,
causadora do mal de Pierce em videiras, um problema grave para a
indústria californiana do vinho.
No Brasil, a Xylella causa a doença do amarelinho em cítricos.
Grupo similar de cientistas
americanos assina o segundo artigo, publicado eletronicamente este mês na revista "Genome Research". É nele que identificaram
uma peça na maquinaria bioquímica da bactéria com potencial
para se tornar o calcanhar-de-aquiles do parasita -uma etapa
fundamental no seu metabolismo, que levaria à sua morte caso
pudesse ser impedida.
Gerar inovação
Esse, afinal, é o objetivo de toda
a parafernália do sequenciamento
genômico fomentado pela Fapesp: desvendar detalhes da biologia molecular do organismo e
tentar inventar meios de manipulá-los para favorecer necessidades
e atividades humanas. Gerar inovação, em outras palavras (as da
moda atual em política científica).
Os norte-americanos que rivalizam com a Rede Onsa da Fapesp
(Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo) escolheram um atalho para encontrar
candidatos a inovação. Em vez de
sequenciar o genoma completo
do micróbio, contentam-se com
soletrar os trechos mais fáceis,
que podem corresponder a mais
de 90% do DNA do organismo, e
deixam vários buracos abertos.
A Onsa ataca a vítima por inteiro. Seu objetivo é obter uma sequência completa de DNA, sem
lacunas. Foi o que fizeram com a
Xylella dos cítricos e com a da videira (que será publicada em breve). Farão o mesmo com a da
amendoeira e com a do oleandro,
base da pesquisa do grupo rival.
Só então pretendem fazer a comparação cabal dos quatro genomas, todos completos.
Os americanos do Joint Genome Institute (JGI), da empresa Integrated Genomics (IG) e da Universidade da Califórnia em Berkeley (UCB) apostaram no rascunho das variedades da bactéria
que infestam amendoeiras e
oleandros. De posse das sequências incompletas das duas cepas,
compararam-nas com a que os
brasileiros tinham tornado pública em 2000, a dos cítricos.
Foi da comparação dos três genomas entre si e com os de outras
bactérias que emergiu, na análise
dos americanos, o candidato a alvo para controle biológico das
doenças agronômicas. Seria necessário, para isso, encontrar um
composto capaz de travar a usina
de produção de energia da Xylella
-pesquisa nada trivial, que pode
consumir meses, anos, ou simplesmente fracassar.
Análises "in silico"
Todo o trabalho de identificação no DNA de genes (receitas de
proteínas usadas pela bactéria) e
de reconstituição de seu metabolismo foi realizado em computador -"in silico", como se diz-,
não em laboratório ("in vitro", ou
"in vivo"). A chave é um programa desenvolvido pela IG, o software de bioinformática ERGO.
"O grupo dos EUA que analisou
os dados está na vanguarda da
bioinformática aplicada na análise de genomas bacterianos", diz
Andrew Simpson, que coordenou
a primeira soletração da Xylella
(ele hoje trabalha no Instituto
Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer de Nova York, com a missão
de estender a experiência da rede
brasileira a outros países).
"Eles têm um software comercial especializado que nós não temos, o benefício de nosso genoma completo para guiá-los, dois
novos genomas de Xylella para
usar na comparação e dois anos
de novos conhecimentos acumulados sobre genomas bacterianos
em geral para utilizar na interpretação. Mesmo assim, foram capazes de terminar com muito pouco
além do que já tínhamos."
Simpson, 48, diz acreditar, ainda, que haja incorreções nos comentários dos rivais sobre o metabolismo da bactéria. Também
apontam problemas no trabalho
americano outras duas cientistas
do lado brasileiro, que figurarão
como primeiras autoras no artigo
da Xylella da videira que está no
prelo (Marie-Anne Van Sluys e
Mariana Cabral de Oliveira, ambas da USP).
Van Sluys (pronuncia-se "ván
slóeis"), 40, e Oliveira, 35, dizem
que as análises do time JGI-IG-UCB não são cuidadosas. Uma de
suas objeções se dirige precisamente contra o suposto alvo potencial identificado pelos americanos: para elas, faltou investigar
mais detalhadamente se a mesma
via metabólica não está presente
em bactérias benéficas para as
plantas (o que inviabilizaria o mecanismo bioquímico para controle biológico, pois mataria também
os germes amigos).
Anamitra Bhattacharyya, bioinformata da IG e primeiro autor
dos dois trabalhos americanos,
rebate a crítica: "Por nossa análise, a Xylella parece ser a única
bactéria com uma cadeia de
transporte de elétrons tão simples", afirmou por e-mail. "Para
muitos organismos, essa enzima
nem chegaria a ser considerada
como alvo, porque têm várias citocromo-oxidases alternativas."
Ou seja, em nenhuma outra bactéria esse mecanismo para obtenção de energia seria tão fundamental quanto para a Xylella.
Bhattacharyya também disse
não ver razão para surpresa, da
parte dos brasileiros, com a publicação do artigo. Ele afirmou ter
convidado por mais de uma vez a
Rede Onsa para uma colaboração
científica, por intermédio de João
Carlos Setubal, da Unicamp, autor sênior do trabalho sobre o primeiro genoma completo da bactéria, na revista "Nature".
Setubal diz que não foi bem assim. Na primeira oportunidade,
em novembro de 2000, a proposta
da IG teria sido genérica, não específica sobre a Xylella. Na segunda, um mês depois, já estava de pé
um acordo que não incluía a empresa IG: "O sentimento da Onsa
nesse momento foi que o USDA
[Departamento de Agricultura
dos EUA, equivalente a um ministério", Onsa, JGI e UCB seriam
mais do que capazes de realizar
essa tarefa, sem precisar da IG".
O brasileiro também nega que
tenha sido convidado para uma
reunião em abril de 2001, na qual
a IG teria apresentado as análises
iniciais dos genomas da Xylella
(como disse Bhattacharyya): "Eu
nunca fui convidado e nem participei desse "meeting", e que eu saiba ninguém da Onsa participou".
Paul Predki, que trabalhava no
JGI e hoje se encontra na empresa
Protometrix, disse à Folha que só
poderia pronunciar-se sobre o assunto na próxima quarta-feira.
Dados são públicos
Mesmo pegos de surpresa, vários brasileiros envolvidos na colaboração concorrem para esclarecer que não houve quebra de
confiança, pois os dados usados
são todos públicos e as análises
feitas, relevantes. Quem resume a
avaliação é José Fernando Perez,
diretor científico da Fapesp,
apontado como mentor do Projeto Genoma Xylella e da política de
incentivo à inovação da fundação:
"O que importa é registrar que
os americanos não tinham nenhuma obrigação ética de informar que estariam publicando artigos expondo análises que eles fizeram sozinhos, com base em dados que obtiveram sozinhos, antes de iniciada a colaboração".
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