São Paulo, sábado, 26 de outubro de 2002

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GENÔMICA

Americanos saem na frente e identificam alvo potencial para combate à Xylella, que causa o amarelinho da laranja

Brasil e EUA disputam primazia por bactéria

MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA

O Brasil foi pioneiro ao sequenciar (soletrar) o DNA da bactéria Xylella fastidiosa, em 2000, mas corre o risco de ver eventuais frutos práticos desse trabalho serem colhidos por um grupo rival dos EUA. A possibilidade surgiu com a publicação de dois artigos científicos que haviam passado despercebidos para a imprensa leiga, no Brasil, mas não para os cientistas -entre os quais causaram surpresa, para dizer o mínimo.
Alguns dos autores do primeiro trabalho, na revista "PNAS" de 17 de setembro, como Paul Predki, estão entre os pesquisadores que tentaram atravessar a contratação de brasileiros para sequenciar outra cepa da bactéria, causadora do mal de Pierce em videiras, um problema grave para a indústria californiana do vinho. No Brasil, a Xylella causa a doença do amarelinho em cítricos.
Grupo similar de cientistas americanos assina o segundo artigo, publicado eletronicamente este mês na revista "Genome Research". É nele que identificaram uma peça na maquinaria bioquímica da bactéria com potencial para se tornar o calcanhar-de-aquiles do parasita -uma etapa fundamental no seu metabolismo, que levaria à sua morte caso pudesse ser impedida.

Gerar inovação
Esse, afinal, é o objetivo de toda a parafernália do sequenciamento genômico fomentado pela Fapesp: desvendar detalhes da biologia molecular do organismo e tentar inventar meios de manipulá-los para favorecer necessidades e atividades humanas. Gerar inovação, em outras palavras (as da moda atual em política científica).
Os norte-americanos que rivalizam com a Rede Onsa da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) escolheram um atalho para encontrar candidatos a inovação. Em vez de sequenciar o genoma completo do micróbio, contentam-se com soletrar os trechos mais fáceis, que podem corresponder a mais de 90% do DNA do organismo, e deixam vários buracos abertos.
A Onsa ataca a vítima por inteiro. Seu objetivo é obter uma sequência completa de DNA, sem lacunas. Foi o que fizeram com a Xylella dos cítricos e com a da videira (que será publicada em breve). Farão o mesmo com a da amendoeira e com a do oleandro, base da pesquisa do grupo rival. Só então pretendem fazer a comparação cabal dos quatro genomas, todos completos.
Os americanos do Joint Genome Institute (JGI), da empresa Integrated Genomics (IG) e da Universidade da Califórnia em Berkeley (UCB) apostaram no rascunho das variedades da bactéria que infestam amendoeiras e oleandros. De posse das sequências incompletas das duas cepas, compararam-nas com a que os brasileiros tinham tornado pública em 2000, a dos cítricos.
Foi da comparação dos três genomas entre si e com os de outras bactérias que emergiu, na análise dos americanos, o candidato a alvo para controle biológico das doenças agronômicas. Seria necessário, para isso, encontrar um composto capaz de travar a usina de produção de energia da Xylella -pesquisa nada trivial, que pode consumir meses, anos, ou simplesmente fracassar.

Análises "in silico"
Todo o trabalho de identificação no DNA de genes (receitas de proteínas usadas pela bactéria) e de reconstituição de seu metabolismo foi realizado em computador -"in silico", como se diz-, não em laboratório ("in vitro", ou "in vivo"). A chave é um programa desenvolvido pela IG, o software de bioinformática ERGO.
"O grupo dos EUA que analisou os dados está na vanguarda da bioinformática aplicada na análise de genomas bacterianos", diz Andrew Simpson, que coordenou a primeira soletração da Xylella (ele hoje trabalha no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer de Nova York, com a missão de estender a experiência da rede brasileira a outros países).
"Eles têm um software comercial especializado que nós não temos, o benefício de nosso genoma completo para guiá-los, dois novos genomas de Xylella para usar na comparação e dois anos de novos conhecimentos acumulados sobre genomas bacterianos em geral para utilizar na interpretação. Mesmo assim, foram capazes de terminar com muito pouco além do que já tínhamos."
Simpson, 48, diz acreditar, ainda, que haja incorreções nos comentários dos rivais sobre o metabolismo da bactéria. Também apontam problemas no trabalho americano outras duas cientistas do lado brasileiro, que figurarão como primeiras autoras no artigo da Xylella da videira que está no prelo (Marie-Anne Van Sluys e Mariana Cabral de Oliveira, ambas da USP).
Van Sluys (pronuncia-se "ván slóeis"), 40, e Oliveira, 35, dizem que as análises do time JGI-IG-UCB não são cuidadosas. Uma de suas objeções se dirige precisamente contra o suposto alvo potencial identificado pelos americanos: para elas, faltou investigar mais detalhadamente se a mesma via metabólica não está presente em bactérias benéficas para as plantas (o que inviabilizaria o mecanismo bioquímico para controle biológico, pois mataria também os germes amigos).
Anamitra Bhattacharyya, bioinformata da IG e primeiro autor dos dois trabalhos americanos, rebate a crítica: "Por nossa análise, a Xylella parece ser a única bactéria com uma cadeia de transporte de elétrons tão simples", afirmou por e-mail. "Para muitos organismos, essa enzima nem chegaria a ser considerada como alvo, porque têm várias citocromo-oxidases alternativas." Ou seja, em nenhuma outra bactéria esse mecanismo para obtenção de energia seria tão fundamental quanto para a Xylella.
Bhattacharyya também disse não ver razão para surpresa, da parte dos brasileiros, com a publicação do artigo. Ele afirmou ter convidado por mais de uma vez a Rede Onsa para uma colaboração científica, por intermédio de João Carlos Setubal, da Unicamp, autor sênior do trabalho sobre o primeiro genoma completo da bactéria, na revista "Nature".
Setubal diz que não foi bem assim. Na primeira oportunidade, em novembro de 2000, a proposta da IG teria sido genérica, não específica sobre a Xylella. Na segunda, um mês depois, já estava de pé um acordo que não incluía a empresa IG: "O sentimento da Onsa nesse momento foi que o USDA [Departamento de Agricultura dos EUA, equivalente a um ministério", Onsa, JGI e UCB seriam mais do que capazes de realizar essa tarefa, sem precisar da IG".
O brasileiro também nega que tenha sido convidado para uma reunião em abril de 2001, na qual a IG teria apresentado as análises iniciais dos genomas da Xylella (como disse Bhattacharyya): "Eu nunca fui convidado e nem participei desse "meeting", e que eu saiba ninguém da Onsa participou".
Paul Predki, que trabalhava no JGI e hoje se encontra na empresa Protometrix, disse à Folha que só poderia pronunciar-se sobre o assunto na próxima quarta-feira.

Dados são públicos
Mesmo pegos de surpresa, vários brasileiros envolvidos na colaboração concorrem para esclarecer que não houve quebra de confiança, pois os dados usados são todos públicos e as análises feitas, relevantes. Quem resume a avaliação é José Fernando Perez, diretor científico da Fapesp, apontado como mentor do Projeto Genoma Xylella e da política de incentivo à inovação da fundação:
"O que importa é registrar que os americanos não tinham nenhuma obrigação ética de informar que estariam publicando artigos expondo análises que eles fizeram sozinhos, com base em dados que obtiveram sozinhos, antes de iniciada a colaboração".


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