São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2006

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+ Marcelo Leite

Intoxicação ética


Pesquisa, na realidade, não havia preservado embrião algum


A promessa de uma medicina regenerativa por meio de terapia com células-tronco é intoxicante", afirma esta semana no periódico científico "Nature" Joe Leigh Simpson, do Baylor College of Medicine (Texas, EUA). Simpson escreveu isso como elogio, seu punhado de açúcar no caldo melado de propaganda da pesquisa com embriões humanos. Mesmo quem está do seu lado, porém, pode e deve tomar a frase como um grão de sal.
O próprio autor reconhece que seu tópico diz respeito tanto a ciência quanto a política e ética. De fato, a pesquisa com embriões suscita repulsa em setores sociais, como certos círculos católicos, por envolver destruição de embriões de 4-5 dias para assim separar, de sua centena de células, aquelas capazes de originar linhagens de células-tronco embrionárias.
Essas células-curinga guardam potencial para se transformar em qualquer outra célula do corpo, o que aguça a imaginação dos biotecnólogos. É o caso de lembrar que não se criaram ainda meios técnicos de aproveitar esse potencial no tratamento de doença alguma. E que, mesmo assim, faz todo sentido franquear a pesquisadores os recursos necessários para que tentem fazê-lo, pois ouvir com respeito objeções de fundo religioso não obriga ninguém a acatá-las.
O assunto de Simpson já foi tratado aqui em 27 de agosto: o estudo de Robert Lanza, publicado eletronicamente pela mesma "Nature" em 23 daquele mês, anunciando para o mundo o advento de "embriões éticos". Ou seja, linhagens de células-tronco embrionárias para pesquisa terapêutica obtidas de células individuais sacadas de embriões mais jovens, de dois dias, quando têm apenas 8-10 delas.
A empresa Advanced Cell Technology, de Lanza, teria criado a possibilidade de comer o pudim e ao mesmo tempo manter sua integridade, ao obter células-tronco de embriões que poderiam desenvolver-se e ser implantados no útero de uma mulher. Não era bem isso, como logo denunciaram os adversários.
Lanza, na realidade, não havia preservado embrião algum, pois consumira no estudo todas as células. Explicou-se dizendo que queria minimizar o número de embriões empregados. O periódico britânico divulgou comunicado, na época, esclarecendo esse pequeno detalhe.
Agora o artigo da ACT aparece finalmente em forma impressa na "Nature", mas com modificações que explicitam a omissão anterior. No "adendo" publicado a pedido dos editores, Lanza sustenta que os esclarecimentos não modificam sua "prova de princípio": linhagens de células-tronco embrionárias podem, sim, ser derivadas de células individuais de embriões de dois dias.
Em sentido estrito, está correto. Ocorre que não houve demonstração concomitante de que os mesmos embriões sejam viáveis, pois todos foram dissolvidos. O adendo também esclarece que as células obtidas de cada embrião foram cultivadas na mesma placa, o que não exclui a hipótese de que substâncias produzidas pelas células tenham auxiliado umas e outras a sobreviver.
Para que um embrião "ético" pudesse desenvolver-se no útero de uma mulher, só uma célula teria de ser retirada dele. E o estudo de Lanza não permite afirmar que uma única célula embrionária pode originar, solitariamente, linhagem de células-tronco.
Intoxicado pela promessa de uma medicina regenerativa, ele não notou que seu pequeno passo ficou muito aquém de um salto gigantesco para a humanidade.

MARCELO LEITE é doutor em ciências sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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