São Paulo, quinta-feira, 27 de junho de 2002

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BIOÉTICA

Projeto em trâmite no Senado liberaria somente pesquisas com células adultas, que já são feitas há tempos no país

Lei de clonagem tropeça em terminologia

SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

A proposta atualmente em trâmite no Senado para regulamentar a clonagem no Brasil pode até parecer liberal, autorizando certas práticas com fins terapêuticos, mas tudo não passa de uma grande confusão de nomenclatura. Na verdade, a nova lei, se aprovada como está, não deve fazer mais que manter o status quo.
As regras brasileiras se alinhariam junto às mais conservadoras do mundo, impedindo todas as pesquisas que envolvessem células embrionárias, tanto para fins reprodutivos (a criação de "cópias" de seres humanos), como para fins terapêuticos (uso de células embrionárias para o desenvolvimento de tratamentos).
O projeto original, de autoria do senador Sebastião Rocha (PDT-AP), foi concebido em 1999. E é tão conservador que o próprio senador reconhece sua inadequação, conforme noticiou a Folha em abril. "Do jeito que estava redigido, o projeto proibia até fertilização in vitro", afirmou Rocha.
Em razão disso, o senador promoveu no início do mês uma série de debates, envolvendo cientistas e líderes religiosos, para chegar a um consenso e reformular o projeto. A comunidade científica se mostrou contra pesquisas com embriões para fins reprodutivos, mas favorável a estudos que possam se converter em tratamentos. Dos quatro líderes religiosos que falaram ao Senado, três foram da mesma opinião. Apenas a Igreja Católica foi contra qualquer pesquisa que envolva embriões.
Em resposta, Rocha está preparando uma emenda a seu projeto original, autorizando a realização de "clonagem terapêutica a partir de células somáticas". Pode parecer evolução, mas não passa de algo que os cientistas já podiam fazer e já estão fazendo há tempos.
Por trás do nome complicado, se esconde um procedimento bem simples. Clonagem terapêutica com células somáticas não passa do processo de extrair uma célula adulta de um organismo, cultivá-la em laboratório e reinjetá-la em uma forma que possa ajudar na regeneração de algum tecido original danificado. Não há embriões, não há "cópias" de seres humanos, não há polêmica.
Diversos pesquisadores brasileiros já realizam pesquisas nesse sentido. Em abril, cientistas da UFRJ anunciaram o uso desse processo para regenerar tecido cardíaco em pacientes terminais.
Quando questionado a respeito, nem o senador soube dizer se o procedimento era ilegal ou não. "Estou requisitando uma consultoria técnica para saber se atualmente isso é mesmo permitido", disse. Rocha espera que os resultados dessa pesquisa estejam à disposição até o fim da semana.
Não é surpreendente, entretanto, que haja dificuldade para determinar o que a lei diz, o que se pode fazer e o que não se pode. A própria nomenclatura é confusa.
"Clonagem, em tese, seria qualquer procedimento que tivesse por objetivo a duplicação de uma célula", diz a geneticista Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano, na USP.
Entretanto, usualmente o termo "clonagem" é associado apenas à criação de embriões que tenham o mesmo código genético de um outro indivíduo, restringindo a definição. "Realmente a nomenclatura não ajuda. Tanto que estamos tentando trocar o termo clonagem, nesses casos, por transferência de núcleo", afirma Zatz.
Transferência de núcleo é um nome mais fiel do procedimento usado para clonagem, que envolve a fusão de duas células (uma adulta com um óvulo sem núcleo) para a formação de um embrião.

Impasses
Embora o projeto de lei já esteja na pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, ainda não há nenhuma perspectiva de sua aprovação. "Isso não deve ser votado antes do final do ano", diz Rocha.
E para isso acontecer será preciso que o próprio texto da lei explicite seu veredicto sobre a pesquisa com células embrionárias voltadas para fins terapêuticos, algo que ele atualmente não faz.
E nem vai fazer, no que depender de Rocha. "Não pretendo incluir nenhuma emenda liberando uso de células embrionárias", diz o senador. "E, se alguém propuser, vou propor uma moratória."
A idéia de Rocha para a moratória seria uma suspensão das pesquisas por dez anos, até que o potencial terapêutico das células adultas (que não exigem uso de embriões) fosse totalmente explorado. Atualmente não se sabe exatamente o quão flexíveis elas são, mas pesquisas recentes sugerem que podem ser quase tão eficientes quanto as embrionárias.



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