São Paulo, sábado, 27 de julho de 2002

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BIOLOGIA

Versão saudável da proteína da vaca louca tem ação fundamental durante desenvolvimento do sistema nervoso

Príon normal "grita" e evita suicídio celular

SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Todo mundo conhece bem o príon "mau", aquela proteína infecciosa que sai por aí deixando vacas loucas e esburacando cérebros. Mas poucos se lembram de que essa molécula tem uma versão saudável, que deve fazer algo importante no organismo. Dois estudos brasileiros recém-publicados ajudam a esclarecer o que a versão "boazinha" da proteína faz: ela atua no mecanismo que evita a morte das células nervosas.
Os trabalhos, feitos por grupos de pesquisadores do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, em São Paulo, e do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foram publicados recentemente no "The Embo Journal" (www.emboj.org), revista da Organização Européia de Biologia Molecular.
Diferentemente do que alguns podem pensar, o príon nasceu com boa índole. Ele só enlouquece quando há uma falha no seu processo normal de montagem.
Uma proteína é montada a partir de uma sequência de peças, chamadas aminoácidos. Conforme elas são adicionadas, formando a estrutura, a proteína começa a se contorcer e a tomar forma. Se ocorre algum problema no processo, a proteína fica com a dobradura errada e não consegue mais realizar sua função original.
O resultado é a criação do príon infeccioso. E ele é tão mau-caráter que não se contenta em infectar, mas coopta seus companheiros normais, transformando-os em infecciosos também. Depois de um tempo, não há mais príon celular (saudável) e as funções da células estão comprometidas.
Ninguém sabia ao certo que funções eram essas (embora já houvesse indicativos de que elas estivessem ligadas à proteção dos neurônios), mas sabia-se que elas deviam ser muito importantes.
"Cerca de 1% de todas as proteínas que existem nas células neuronais são príons celulares", conta Ricardo Brentani, do Ludwig, um dos autores dos dois estudos. Nessa quantidade toda, é inconcebível que ele não tenha nenhuma função importante. E os pesquisadores estavam determinados a descobrir qual era ela.
Durante essas investigações, eles imaginaram que deveria haver uma molécula que servisse como receptora do príon, para ativar algo na célula. "Isso nós publicamos em 1997, na [revista" "Nature Medicine'", conta Brentani. "Naquele artigo, tínhamos "inventado" um peptídeo [pedaço de proteína" teórico que simularia o posto de atracação do príon."
Agora, os pesquisadores mostraram que aquele peptídeo teórico existe mesmo e fica na superfície das células, inserido em uma proteína chamada extendina.

CVV celular
Faltava, entretanto, entender o que essa ligação entre príon e extendina fazia de bom para a célula. A descoberta que Brentani fez com Vilma Martins, Rafael Linden, Luciana Chiarini e colegas foi que o príon se conecta à extendina nas pontas de dois neurônios, avisando que a conexão entre eles (a sinapse, que permite a transmissão de impulsos de uma célula a outra) teve sucesso.
Ele atua como um análogo de um voluntário do CVV (Centro de Valorização da Vida), aconselhando a célula a não cometer o suicídio celular, chamado de apoptose. "Neurônios que não fazem a conexão direito devem morrer. Quando a conexão é bem-sucedida, o receptor dispara um alerta, impedindo que a célula sofra apoptose", afirma.
Com base em seus estudos do receptor do príon normal, Brentani e seus colegas esperam abrir novas possibilidades de tratamento para a já famosa (mas rara) doença da vaca louca. Mais que isso, nesse processo pode estar a chave para doenças neurológicas muito mais comuns, que não têm explicação satisfatória, como epilepsia e distúrbio bipolar.



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