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BIOLOGIA
Versão saudável da proteína da vaca louca tem ação fundamental durante desenvolvimento do sistema nervoso
Príon normal "grita" e evita suicídio celular
SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL
Todo mundo conhece bem o
príon "mau", aquela proteína infecciosa que sai por aí deixando
vacas loucas e esburacando cérebros. Mas poucos se lembram de
que essa molécula tem uma versão saudável, que deve fazer algo
importante no organismo. Dois
estudos brasileiros recém-publicados ajudam a esclarecer o que a
versão "boazinha" da proteína
faz: ela atua no mecanismo que
evita a morte das células nervosas.
Os trabalhos, feitos por grupos
de pesquisadores do Instituto
Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, em São Paulo, e do Instituto
de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foram publicados recentemente no "The
Embo Journal" (www.emboj.org), revista da Organização Européia de Biologia Molecular.
Diferentemente do que alguns
podem pensar, o príon nasceu
com boa índole. Ele só enlouquece quando há uma falha no seu
processo normal de montagem.
Uma proteína é montada a partir de uma sequência de peças,
chamadas aminoácidos. Conforme elas são adicionadas, formando a estrutura, a proteína começa
a se contorcer e a tomar forma. Se
ocorre algum problema no processo, a proteína fica com a dobradura errada e não consegue
mais realizar sua função original.
O resultado é a criação do príon
infeccioso. E ele é tão mau-caráter
que não se contenta em infectar,
mas coopta seus companheiros
normais, transformando-os em
infecciosos também. Depois de
um tempo, não há mais príon celular (saudável) e as funções da
células estão comprometidas.
Ninguém sabia ao certo que
funções eram essas (embora já
houvesse indicativos de que elas
estivessem ligadas à proteção dos
neurônios), mas sabia-se que elas
deviam ser muito importantes.
"Cerca de 1% de todas as proteínas que existem nas células neuronais são príons celulares", conta Ricardo Brentani, do Ludwig,
um dos autores dos dois estudos.
Nessa quantidade toda, é inconcebível que ele não tenha nenhuma função importante. E os pesquisadores estavam determinados a descobrir qual era ela.
Durante essas investigações,
eles imaginaram que deveria haver uma molécula que servisse como receptora do príon, para ativar algo na célula. "Isso nós publicamos em 1997, na [revista" "Nature Medicine'", conta Brentani.
"Naquele artigo, tínhamos "inventado" um peptídeo [pedaço de
proteína" teórico que simularia o
posto de atracação do príon."
Agora, os pesquisadores mostraram que aquele peptídeo teórico existe mesmo e fica na superfície das células, inserido em uma
proteína chamada extendina.
CVV celular
Faltava, entretanto, entender o
que essa ligação entre príon e extendina fazia de bom para a célula. A descoberta que Brentani fez
com Vilma Martins, Rafael Linden, Luciana Chiarini e colegas foi
que o príon se conecta à extendina nas pontas de dois neurônios,
avisando que a conexão entre eles
(a sinapse, que permite a transmissão de impulsos de uma célula
a outra) teve sucesso.
Ele atua como um análogo de
um voluntário do CVV (Centro
de Valorização da Vida), aconselhando a célula a não cometer o
suicídio celular, chamado de
apoptose. "Neurônios que não fazem a conexão direito devem
morrer. Quando a conexão é
bem-sucedida, o receptor dispara
um alerta, impedindo que a célula
sofra apoptose", afirma.
Com base em seus estudos do
receptor do príon normal, Brentani e seus colegas esperam abrir
novas possibilidades de tratamento para a já famosa (mas rara)
doença da vaca louca. Mais que isso, nesse processo pode estar a
chave para doenças neurológicas
muito mais comuns, que não têm
explicação satisfatória, como epilepsia e distúrbio bipolar.
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