São Paulo, sábado, 27 de outubro de 2007

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Área indígena salva pássaro amazônico de sumir do mapa

Abandonado pela ciência, o joão-de-barba-grisalha perdeu quase todo o habitat para plantações de arroz em Roraima estudou mas que não está em perigo

Bióloga carioca trabalhando nos EUA avaliou pela 1ª vez o estado da espécie e diz que terra de índios invadida por arrozeiros é seu reduto final

Arquivo Pessoal
A bióloga Mariana Vale segura um xororó-do-rio-branco, ave que estudou mas que não está em perigo

RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma das espécies de passarinho amazônicas sob maior risco de extinção só está viva ainda porque a maior parte de sua população está dentro de reservas indígenas em Roraima. O status de ameaça do joão-de-barba-grisalha (Synallaxis kollari), ave quase "abandonada" pela ciência, só foi avaliado agora por ter sido objeto de estudo da bióloga carioca Mariana Vale, da Universidade Duke, de Durham (Estados Unidos).
A pesquisadora de 32 anos -que acompanhada apenas de um barqueiro fez diversas expedições à região, onde ocorrem conflitos violentos entre índios e agricultores- defendeu há duas semanas sua tese de doutorado. No trabalho, ela recomenda a elevação do pássaro da categoria de "vulnerável" para "ameaçada" na lista vermelha de espécies da IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza).
Em estudo recém publicado na revista "Bird Conservation International", Vale mostra que que o joão-de-barba grisalha perdeu a maior parte do seu hábitat extremamente restrito -as matas de galeria em rios do norte de Roraima- para plantações de arroz, a maior parte delas irregulares.
Como a região não possui unidades de conservação, o único refúgio que a espécie encontrou foram as terras dos índios, que travam uma verdadeira guerra para expulsar os arrozeiros invasores (leia texto abaixo).
Além do joão-de-barba-grisalha, Vale estudou o xororó-do-rio-branco. "Escolhi essas espécies a partir do meu mestrado na Universidade Columbia, quando eu estava procurando espécies endêmicas da Amazônia brasileira que têm grande risco de se extinguir no futuro", disse.
"A primeira coisa que me chamou atenção foi que, quando comecei a estudar essas espécies [antes da expedições], não existia referência em literatura dizendo que elas ocorriam em área indígena, Deus sabe por quê", contou a bióloga à Folha. "Acho que as pessoas entravam em terra indígena sem saber, ou não queriam dizer que entraram porque não tinham autorização da Funai."
Em 2002, após alguma burocracia para obter a licença da Funai -e um bom trabalho para ganhar a confiança dos índios- Vale iniciou suas expedições. Em três viagens entre 2003 e 2005, percorreu 500 km de rios em um barco com capacidade para apenas duas pessoas, somando quase 200 dias de viagem.
"A gente foi subindo rios, parando a cada três quilômetros, e usávamos um "playback" com o canto do passarinho macho para atrair a espécie", conta. "Como essa é uma espécie territorial, se você toca o canto do macho e tiver outro macho na área ele responde e fica muito injuriado: é supostamente um outro macho que está tentando entrar no território dele."
Ao final da pesquisa,a bióloga concluiu que o xororó-do-rio-branco está em uma situação relativamente confortável, e seu status de perigo pode ser baixado de "ameaçado" para "quase-ameaçado". "O xororó também vive na parte sul de Roraima, que é menos detonada e tem unidades de conservação", explica Vale.
O joão-de-barba-grisalha, porém, que habita apenas uma pequena área no norte, está mesmo em situação bem mais delicada, mas ainda encontra refúgio nas terras indígenas.

Juntando migalhas
Apesar de a expedição de Vale não requerer uma infra-estrutura cara, deu trabalho juntar o dinheiro necessário ("Pedi bolsa para tudo quanto é lugar."), mas com verbas de pesquisa dos EUA conseguiu fechar as contas. "Fui juntando migalhas mesmo: US$ 500 aqui, US$ 1.000 ali..."
Na hora de passar a sacola, ajudou o fato de Vale ser aluna de Stuart Pimm, um dos ecólogos mais respeitados dos EUA, que a orientou desde 2000.
"Na época ele era professor na Universidade Columbia [em Nova York], e eu pedi que ele fosse meu orientador de mestrado", conta. "Eu fui na cara dura mesmo, não tinha nenhum contato nem nada. Ele disse que fazia dez anos que não orientava estudantes de mestrado -só doutorado-, mas no final eu o convenci e ele acabou topando."
Nascida na Argélia de pai paraense e mãe francesa, Vale, que diz gostar de "escalada" e "samba", deve voltar em breve ao Rio. "Em janeiro eu estou indo para o Laboratório de Ecologia de Aves da Uerj por dois anos, para fazer um estudo sobre a redistribuição das aves endêmicas da mata atlântica com o aquecimento global."


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