São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 2008

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+Marcelo Leite

O enigma da talidomida


Foco distorcido pode indicar que faltou cuidado com a vida

O termo "talidomida" virou palavrão, mas a substância ainda é um remédio importante.
Suas propriedades antiinflamatórias e de combate à proliferação de vasos sangüíneos fazem dela um medicamento útil para tratar tanto a hanseníase, a doença antes conhecida como "lepra", quanto o mieloma múltiplo, um tipo de tumor da medula óssea.
Como quase ninguém sabe disso, prossegue a má fama.
A reputação nasceu com um célebre desastre iatrogênico, quer dizer, efeitos adversos causados pela própria medicina. Nos anos 1950, a droga foi aprovada na Europa para tratar náusea e vômitos em mulheres grávidas (nos Estados Unidos, esse uso nunca chegou a ser autorizado). Em conseqüência, cerca de 10 mil bebês nasceram com malformações, e a talidomida terminou banida.
Os adeptos da teoria da conspiração poderiam concluir que houve irresponsabilidade da indústria farmacêutica. Não parece ter sido esse o caso -aqui. O remédio havia passado pelos testes habituais de segurança com animais, aqueles que alguns militantes, de modo irrefletido, gostariam de ver proibidos.
Nenhum efeito teratogênico (indução de malformações) foi observado nos camundongos e ratos utilizados.
Até há pouco essa diferença brutal no resultado entre o uso em seres humanos e em roedores permanecia um mistério. Aí entrou em campo a equipe de Jürgen Knobloch, da Universidade de Colônia (Alemanha), que conseguiu identificar o detonador molecular da explosão de malformações.
A talidomida ingerida pela gestante induz a formação de superóxidos em algumas células de seu embrião. Superóxidos são um tipo de radical livre, composto por uma molécula com dois átomos de oxigênio que perderam um elétron, o que os torna muito tóxicos.
As células em que esses radicais se acumulam precisam livrar-se deles.
Caso contrário, inicia-se um processo de suicídio celular conhecido como apoptose. A talidomida transforma-se então numa arma de destruição em massa de células que deveriam reproduzir-se para dar origem às várias partes do embrião, como seus membros.
Surgem as malformações.
O grupo de Colônia conseguiu mostrar que os roedores são insensíveis a esse mecanismo. Sua resistência se deve a níveis altos de glutationa, um dos antioxidantes naturais mais eficientes na destruição dos superóxidos induzidos pela talidomida.
A defesa dos embriões humanos baseada em glutationa é muito menos eficiente, como mostrou a equipe de Knobloch ao elevar os níveis da substância e, por essa via, torná-la igualmente protetora.
O pesquisador alemão diz não acreditar, contudo, que a descoberta dessa diferença crucial entre humanos e roedores possa reduzir a confiança de pesquisadores nos modelos animais.
Na sua opinião, eles só precisam ser continuamente aperfeiçoados para que possam dar melhores resultados.
"A medicina aprendeu com essa tragédia, e agora somos muito mais cuidadosos ao preparar e interpretar testes com animais, por exemplo usando diferentes espécies. Portanto, penso que hoje uma nova tragédia ao estilo da talidomida é improvável", afirma.
"Aperfeiçoar os modelos animais significaria uma manipulação genética, ou de outro tipo, que torne o modelo mais próximo do ser humano." Roedores mais parecidos conosco, em última análise. O trabalho do grupo de Knobloch está publicado na edição de 1º de dezembro do periódico "Molecular Pharmaceutics" (pubs.acs.org/doi/abs/ 10.1021/mp8001232).


MARCELO LEITE é autor dos livros "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br) E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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