São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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Ciência em Dia

A moralidade dos clones e o saco de proteínas

Marcelo Leite
editor de Ciência

O "pai" de Dolly, Ian Wilmut, surpreendeu mais uma vez ao defender vigorosa e publicamente, no dia 21, a clonagem de seres humanos. O cientista escocês que deu ao mundo o primeiro clone de um mamífero adulto, em 1996, foi além da defesa-padrão do setor, as loas à clonagem terapêutica, e pediu licença para, além da clonagem, fazer também a modificação genética de seres humanos.
O curioso é que o artigo explosivo de Ian Wilmut, publicado na revista britânica de divulgação "New Scientist" (www.newscientist.com) e reproduzido na Folha, é defensável. Isso apesar de misturar ingredientes que muita gente considera tabu e de um título original provocador: "The Moral Imperative for Human Cloning" (o imperativo moral da clonagem humana).
O raciocínio do pesquisador é que as promessas da pesquisa com clonagem de embriões são tantas que seria imoral deixar de realizá-la, mais ainda proibi-la. Ele começa por defender a clonagem como meio de obter culturas de células especializadas do corpo humano, que serviriam de campo de provas para os efeitos de novos medicamentos.
Funcionaria assim: tomam-se células adultas de uma pessoa afetada pela doença que se quer tratar, que em seguida seriam fundidas com óvulos desnucleados, para gerar embriões; cultivados até a fase de blastocisto (cem células), deles seriam retiradas as células-tronco então "convencidas" a se diferenciar num tecido qualquer (músculo cardíaco, por exemplo). Essa amostra viva de tecido humano serviria depois para estudos meticulosos, em escala molecular, do que acontece nas células quando o remédio em estudo lhes é aplicado.
Provavelmente seria um fator capaz de aumentar a eficiência e de baixar o custo do desenvolvimento de novos fármacos, processo que costuma alcançar a casa das centenas de milhões de dólares. O pesquisador escocês também sugere aplicar a metodologia em células de pessoas com comprovada reação adversa aguda a certos remédios, de modo a criar testes de sensibilidade capazes de identificar pacientes suscetíveis.
Ocorre que Wilmut foi muito além. Diante de uma objeção pouco comentada em meio ao entusiasmo com células-tronco de embriões clonados, a baixa disponibilidade de óvulos humanos (cuja coleta envolve risco para as mulheres doadoras), ele se saiu com a proposta de empregar óvulos de um mamífero próximo para fabricar células-tronco (vacas), pois qualquer óvulo não seria mais que "um saco de proteínas".
Mais para o final do artigo, Wilmut defende ainda que a técnica da clonagem seja associada com a modificação genética de células-tronco embrionárias, que seriam então usadas para gerar novos embriões expurgados de doenças hereditárias. Detalhe: não seriam clones de adulto algum, mas de um embrião destruído para obter as células-tronco.
O argumento todo é defensável, mas tem pontos fracos. Primeiro, tudo é ainda muito hipotético, e há quem veja tantas ou mais promessas na pesquisa com células-tronco adultas, cuja obtenção não exige destruir embriões. Depois, as moléstias genéticas que ele tem em vista são raríssimas, e os métodos de estudo, incertos e caros -há que pesar a relação custo-benefício, também.
Saco de proteína ou não, a descrição vale também para cada um de nós.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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