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Ciência em Dia
A moralidade dos clones e o saco de proteínas
Marcelo Leite
editor de Ciência
O "pai" de Dolly, Ian Wilmut, surpreendeu mais uma vez ao defender vigorosa e publicamente, no dia 21, a
clonagem de seres humanos. O cientista
escocês que deu ao mundo o primeiro
clone de um mamífero adulto, em 1996,
foi além da defesa-padrão do setor, as
loas à clonagem terapêutica, e pediu licença para, além da clonagem, fazer
também a modificação genética de seres
humanos.
O curioso é que o artigo explosivo de
Ian Wilmut, publicado na revista britânica de divulgação "New Scientist"
(www.newscientist.com) e reproduzido
na Folha, é defensável. Isso apesar de
misturar ingredientes que muita gente
considera tabu e de um título original
provocador: "The Moral Imperative for
Human Cloning" (o imperativo moral
da clonagem humana).
O raciocínio do pesquisador é que as
promessas da pesquisa com clonagem
de embriões são tantas que seria imoral
deixar de realizá-la, mais ainda proibi-la.
Ele começa por defender a clonagem como meio de obter culturas de células especializadas do corpo humano, que serviriam de campo de provas para os efeitos de novos medicamentos.
Funcionaria assim: tomam-se células
adultas de uma pessoa afetada pela
doença que se quer tratar, que em seguida seriam fundidas com óvulos desnucleados, para gerar embriões; cultivados
até a fase de blastocisto (cem células), deles seriam retiradas as células-tronco então "convencidas" a se diferenciar num
tecido qualquer (músculo cardíaco, por
exemplo). Essa amostra viva de tecido
humano serviria depois para estudos
meticulosos, em escala molecular, do
que acontece nas células quando o remédio em estudo lhes é aplicado.
Provavelmente seria um fator capaz de
aumentar a eficiência e de baixar o custo
do desenvolvimento de novos fármacos,
processo que costuma alcançar a casa
das centenas de milhões de dólares. O
pesquisador escocês também sugere
aplicar a metodologia em células de pessoas com comprovada reação adversa
aguda a certos remédios, de modo a criar
testes de sensibilidade capazes de identificar pacientes suscetíveis.
Ocorre que Wilmut foi muito além.
Diante de uma objeção pouco comentada em meio ao entusiasmo com células-tronco de embriões clonados, a baixa
disponibilidade de óvulos humanos (cuja coleta envolve risco para as mulheres
doadoras), ele se saiu com a proposta de
empregar óvulos de um mamífero próximo para fabricar células-tronco (vacas),
pois qualquer óvulo não seria mais que
"um saco de proteínas".
Mais para o final do artigo, Wilmut defende ainda que a técnica da clonagem
seja associada com a modificação genética de células-tronco embrionárias, que
seriam então usadas para gerar novos
embriões expurgados de doenças hereditárias. Detalhe: não seriam clones de
adulto algum, mas de um embrião destruído para obter as células-tronco.
O argumento todo é defensável, mas
tem pontos fracos. Primeiro, tudo é ainda muito hipotético, e há quem veja tantas ou mais promessas na pesquisa com
células-tronco adultas, cuja obtenção
não exige destruir embriões. Depois, as
moléstias genéticas que ele tem em vista
são raríssimas, e os métodos de estudo,
incertos e caros -há que pesar a relação
custo-benefício, também.
Saco de proteína ou não, a descrição
vale também para cada um de nós.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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