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São Paulo, quarta-feira, 29 de outubro de 2003

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BIOÉTICA

Cientistas e inimigos da vivissecção tentam influenciar projetos no Congresso que atualizam normas para experimentos

Câmara discute experiências com animais

REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Há poucas determinações legais sobre o uso de animais em experimentos no Brasil, mas isso pode mudar até o fim deste ano. Projetos de lei que procuram regulamentar essas experiências já estão na CCJR (Comissão de Constituição e Justiça e de Redação) da Câmara dos Deputados. Cientistas se dizem favoráveis à regulamentação, mas afirmam que a pesquisa não pode ser engessada por ela.
As propostas pretendem preencher um vazio de décadas. Até hoje, a legislação se limitou a determinar que a vivissecção (operação em animais vivos) para fins didáticos ou científicos fosse realizada apenas com anestesia e em estabelecimentos de ensino superior (lei 6.638, de 1979) e a considerar como crime "experiência dolorosa ou cruel [...] quando existirem recursos alternativos" (lei 9.605, de 1998).
É muito pouco para dar conta dos avanços da biotecnologia nos últimos anos e da importância desse tipo de experiência, afirmam cientistas. "Com questões como os animais transgênicos e a biossegurança, essas leis são obsoletas", diz Silvia Barreto Ortiz, 41, pesquisadora da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Cobea (Colégio Brasileiro de Experimentação Animal). "É preciso que a legislação ampare as instituições e a pesquisa."
As propostas que estão na CCJR são do deputado Sérgio Arouca (PPS-RJ, morto em agosto deste ano), cuja versão original chegou à Câmara ainda em 1995, e da deputada Iara Bernardi (PT-SP), apresentada em agosto deste ano (veja quadro abaixo). "Acho que os projetos não devem ficar parados. O relator, deputado Sérgio Miranda [PC do B-MG], tem todas as condições de ouvir as partes interessadas e de dar seu parecer até o final do ano", declara Bernardi, 51.
O projeto original da deputada petista também deve passar por modificações, já que foi considerado excessivamente restritivo por membros da comunidade científica. Bernardi se diz aberta a modificações em alguns pontos, como a definição abrangente demais dos seres vivos protegidos pela legislação (no projeto original, estão incluídos até animais invertebrados, como insetos).

Modelos de doenças
Só nos Estados Unidos, cerca de 18 milhões de animais são utilizados por ano em pesquisas (são raros os dados confiáveis para o que é feito no Brasil). O grosso dessas cobaias (entre 80% e 90%) corresponde a camundongos, ratos e roedores, embora porcos, cães, gatos e primatas, além de aves e outros vertebrados, também sejam utilizados.
Para os cientistas, experimentos em animais vivos são fundamentais porque boa parte das funções de seus organismos e das doenças que podem desregulá-las espelham o que acontece em seres humanos, embora haja diferenças importantes entre as espécies.
"As pessoas têm de ser coerentes. Se elas querem a proibição total de experimentos animais, então não devem nunca mais tomar uma aspirina ou se vacinar contra a poliomielite", diz Silvia Ortiz.
Para o ambientalista Marco Ciampi, 48, da ONG Arca Brasil, os cientistas tendem a superestimar a aplicação dos resultados obtidos com os animais em seres humanos. "Os padrões estabelecidos para validar os resultados de métodos alternativos são muito mais altos que os que valem para os experimentos com animais vivos", critica Ciampi.
Para ele, embora seja irrealista exigir a eliminação desse tipo de experiência, é preciso perseguir o objetivo dos "três Rs", comum a diversas organizações internacionais de proteção aos animais. As letras corresponderiam a reposição (trocar os animais por testes com células in vitro, por exemplo), refinamento (melhoria das condições ambientais nos biotérios) e redução (uso do menor número possível de animais).
Nesse ponto, há elementos comuns entre as reivindicações de ambientalistas e cientistas. "Quanto melhor a legislação brasileira a balizar os experimentos, menor será o número de pesquisadores mal-informados e menor o número de animais utilizados", afirma Ortiz. A pesquisadora concorda com o incentivo aos métodos alternativos que aparece em ambos os projetos, mas afirma que a decisão deve ficar a cargo de especialistas capazes de avaliar quando eles são eficazes.
A proposta de Arouca contempla a criação do Concea (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal), que supervisionaria os conselhos de ética de cada instituição. "Acho que é importante verificar se esses conselhos estão atuando de forma efetiva", afirma Iara Bernardi.
Por enquanto, os pontos mais duvidosos são os que tratam dos testes feitos pela indústria farmacêutica e de alimentos (Bernardi sugere sua proibição), a restrição ou banimento das experiências com espécies em extinção e a chamada excusa de consciência. Por meio dela, pesquisadores ou estudantes poderiam alegar razões íntimas para não participar desse tipo de experimento.


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