São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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Conferência em São Paulo expõe o ideário do criacionismo, movimento que diz que a evolução está condenada e quer ver o literalismo bíblico nas escolas

Seleção sobrenatural

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

0 conhecimento revelado e o conhecimento científico têm naturezas e propósitos distintos." Quem ouvisse a frase de Euler Pereira Bahia na quinta-feira retrasada, durante a abertura do 5º Encontro Nacional de Criacionistas, poderia respirar com alívio. Ali estava o reitor de uma instituição criacionista, o Unasp (Centro Universitário Adventista de São Paulo), aparentemente se aliando com o que muita gente considera apenas bom senso: ciência e religião são domínios importantes, mas não se misturam.
O alívio, como se verificaria, foi temporário. O que se seguiu à fala do reitor foram quatro dias de ataques à evolução pela seleção natural, a teoria proposta pelos naturalistas britânicos Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1919) em 1858 que explicou como as espécies se originam e que baniu para sempre o sobrenatural da biologia.


Para a geóloga criacionista Elaine Kennedy, as evidências disponíveis não autorizam estabelecer uma idade jovem ou antiga para a Terra


As estocadas foram desferidas principalmente pelos chamados "cientistas da criação", cristãos evangélicos que levam a Bíblia ao pé da letra e que costumam defender o ensino do livro do Gênese nas escolas para explicar o surgimento e a evolução da vida.
Também compareceram ao encontro proponentes do chamado design inteligente, tese que luta para ganhar o rótulo de "científica" ao postular que a imensa complexidade dos seres vivos não pode ser explicada pela seleção natural, mas é produto de um "planejamento".
A conferência foi realizada de 20 a 23 deste mês e acompanhada pela reportagem da Folha. Na programação, palestras de estudiosos membros de instituições adventistas dos EUA e do Brasil, sob títulos sugestivos como "domando os dinossauros" e "estratificação espontânea", além de uma discussão seríssima sobre se havia morte e decomposição no Éden (o conferencista, um americano, ponderava se os caroços de maçã se acumulavam eternamente no chão do Paraíso).
No final, uma excursão geológica e paleontológica, dedicada a mostrar supostas evidências de que a Terra tem menos de 10 mil anos de idade e foi realmente assolada pelo dilúvio.

Sinais nas rochas
A julgar pela conferência da geóloga norte-americana Elaine Kennedy, do Geosciences Research Institute (um instituto de pesquisas criado por adventistas de sétimo dia em Loma Linda, no Estado da Califórnia), as evidências do dilúvio estão em toda parte -até mesmo em inocentes cristais de calcita.
Na palestra, intitulada "Dados e Interpretação: Conhecendo a Diferença", Kennedy argumentou que, em ciência, tudo que não são medições em campo ou laboratório são interpretações do cientista. E que dados podem ser interpretados de várias formas -concluindo, com isso, que as geociências e a Bíblia têm exatamente o mesmo peso na explicação da estrutura da Terra. "Todas as interpretações científicas são subjetivas e enviesadas", afirmou.
Admitindo ela mesma ter lá seu "viés" de interpretação, a geóloga mostrou à platéia um slide do padrão de refração da luz sobre uma fina fatia de calcita. Fatiar rochas e minerais e olhá-los contra a luz é um procedimento bastante usado para descobrir sua composição química.
"Este é o meu favorito, porque você vê nele um arco-íris circular e uma cruz negra", sorriu. "Por meio da tecnologia, você pode ver a mensagem de Deus e a promessa do Dilúvio", declarou a americana, a uma platéia maravilhada.
Kennedy foi mais longe: disse não acreditar no principal lema das ciências geológicas -o presente é a chave para o passado- porque a Bíblia diz que isso é falso e que "as evidências disponíveis não autorizam estabelecer uma idade jovem ou antiga para a Terra".
Admitiu, no entanto, que o "paradigma do dilúvio" não consegue explicar uma coisinha: por que a sucessão de fósseis animais em camadas de rocha diferentes ao longo das eras é tão consistente em todo planeta. "Como é que existem fósseis jurássicos em rochas jurássicas na América do Norte, fósseis jurássicos em rochas jurássicas na América do Sul e fósseis jurássicos em rochas jurássicas na Europa? Eu, como criacionista, não consigo explicar isso."
Numa segunda conferência, sobre dinossauros, colocou como uma "questão pendente" a existência de grandes carnívoros, como o Tyrannosaurus rex, atribuindo seu tamanho exagerado a uma alteração devido aos efeitos do pecado original.

Momento
"O criacionismo não é apenas ciência sem fundamentos, como religião anacrônica", disse o teólogo Eduardo R. da Cruz, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Mas é um anacronismo que está ganhando momento, admite Cruz. No Rio de Janeiro e na Bahia, a explicação bíblica para a criação já é ensinada nas escolas públicas. Uma pesquisa feita pelo Ibope sob encomenda da revista "Época" e publicada em janeiro mostra que 89% dos brasileiros acham que o criacionismo deve ser ensinado nas escolas.
"Na periferia, o criacionismo corre solto. E não pode ser simplesmente reprimido", afirmou o teólogo. A infiltração se dá por meio das igrejas pentecostais, cuja presença é forte nas zonas mais pobres e que acabam abraçando o literalismo bíblico.
Nem todos os criacionistas, diga-se logo, querem a Bíblia como livro-texto nas aulas de ciências. "A ciência atual não aceita Deus e a criação", diz Márcia Oliveira de Paula, da Unasp (Centro Universitário Adventista de São Paulo), organizadora do encontro. "Mas, numa aula de ciência, apresentar uma teoria que tenha apoio divino não funciona." Segundo ela e outros criacionistas brasileiros, o lugar para esse tipo de ensinamento são as aulas de religião. Que não podem ser ministradas em sua forma confessional em escolas públicas no Brasil, um Estado laico.
Nos EUA, país onde o fundamentalismo cristão produziu o "criacionismo científico" nos anos 1960, o quadro é diferente. Batalhas judiciais têm sido travadas nas últimas semanas para estabelecer o ensino das idéias sobre a criação bíblica, levantando, ao mesmo tempo, questões sobre a "credibilidade" do darwinismo. A última delas foi vencida pelos criacionistas no distrito escolar de Dover, no Estado da Pensilvânia. Outra, sobre adesivos em livros didáticos no condado de Cobb, Geórgia, foi perdida por eles.
Cruz afirma que o movimento criacionista ainda pode crescer no Brasil. "A maioria católica nem sabe o que está em jogo", afirma.
Para o físico e colunista da Folha Marcelo Gleiser, da Universidade Dartmouth, em New Hampshire (EUA), os cientistas precisam reconhecer que o criacionismo não pode mais ser ignorado. Até agora, a atitude de biólogos evolucionistas como o paleontólogo americano Stephen Jay Gould (morto em 2002) e o etólogo britânico Richard Dawkins -que eram adversários intelectuais- tem sido simplesmente se recusar a debater com os criacionistas. "Só aparecer no mesmo tablado que eles é emprestar-lhes o respeito que eles desejam", escreveu Dawkins a Jay Gould em 2001. Numa atitude rara, o americano concordou.
"Os cientistas têm de acordar para a importância sociocultural do movimento criacionista", diz Gleiser. "Alegar que o debate dá credibilidade àqueles que não a merecem é uma postura ineficaz e perigosa. Se consideramos o criacionismo como uma doutrina errônea, devemos explicar à sociedade por quê."
O teólogo da PUC dá como exemplo dessa negligência o lançamento no Brasil (em 1997) do livro "A Caixa Preta de Darwin", do americano Michael Behe, da Universidade Leigh, estrela do design inteligente. Na obra, Behe desfia a "complexidade irredutível" das biomoléculas, que só poderia ser resultado de um planejamento inteligente. "O livro foi ignorado. Há uma discussão ali que não pode ser ignorada", afirmou.

Coelho cambriano
Por enquanto, nada muda o fato de que o criacionismo, ao contrário do darwinismo, segue sem confirmação. "Peça a eles um único [fóssil de] coelho no [Período] Cambriano e eu me rendo", diz o virologista Paolo Zanotto, da USP. "Enquanto isso, vamos explicando a vida segundo a evolução." O padre e paleontólogo italiano Giuseppe Leonardi prefere separar as coisas. Questionado uma vez por um jornalista sobre se via conflito entre sua vocação e sua profissão de caçador de fósseis -portanto, evolucionista-, disse que não. E sorriu: "Deus não quer cientistas. Deus quer cristãos."


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