São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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A política do design

Coordenador de núcleo brasileiro de design inteligente aponta "improbidades científicas" em livro didático de biologia

DA REDAÇÃO

0 design inteligente, ferramenta do criacionismo, é um "movimento filosófico e de ação política" que tem como objetivo influenciar o conteúdo dos livros didáticos em relação às "falhas" e "omissões" cometidas por eles ao ensinar aos estudantes a teoria da evolução pela seleção natural, que sofreria de uma "total insuficiência epistêmica".
As aspas são de Enézio E. de Almeida Filho, um professor do ensino médio que coordena o Núcleo Brasileiro de Design Inteligente. Classificando a teoria de Darwin como "zona de incerteza científica", Almeida Filho fez uma conferência durante o encontro criacionista atacando os livros didáticos de biologia do Brasil. Segundo ele, a abordagem da evolução nos livros não cumpre os pré-requisitos do Ministério da Educação de despertar a consciência crítica nos estudantes do segundo grau.
"Nós não temos exatidão no conhecimento que é passado e não existe objetividade porque existe, sim, uma defesa de uma ideologia. [Isso] é negado, mas é uma ideologia materialista e atéia."
O professor insistiu em classificar os ataques da tese do planejamento inteligente à evolução de Darwin como "um debate entre ciência e ciência". Não explicou por que razão além de "preconceito" do establishment científico o argumento do design tem sistematicamente falhado em cumprir o preceito básico da investigação científica: a validação pelos pares, em forma de publicação em periódicos especializados.
Até hoje, nenhum artigo científico criacionista ou de design inteligente foi aceito para publicação em periódicos de alto impacto e que possuem o sistema de validação pelos pares (conhecido em inglês como "peer review"), como o norte-americano "Science" (www.sciencemag.org) e o britânico "Nature" (www.nature.com). O único caso em que isso aconteceu foi na revista "Proceedings of the Biological Society of Washington", que acolheu um trabalho sobre design inteligente em agosto passado.
O editor do periódico na época em que o artigo foi aceito pertencia a uma sociedade defensora de idéias criacionistas. E a Sociedade Biológica de Washington, que publica a revista, admitiu que o artigo não era apropriado e foi ao prelo sem conhecimento do seu conselho editorial.
Em sua conferência, Almeida Filho se dedicou a atacar as "improbidades científicas" do livro de segundo grau "Fundamentos da Biologia Moderna", de José Mariano Amabis e Gilberto Rodrigues Martho.
Sua principal reclamação é que os autores aceitam sem questionamentos as evidências em favor da teoria darwinista -cujas fraquezas, diz, são freqüentemente discutidas na literatura científica especializada.

Goela abaixo
Um exemplo de suposta "fraqueza" da teoria da evolução que os livros didáticos empurrariam goela abaixo dos estudantes é a chamada explosão cambriana, ocorrida há cerca de 570 milhões de anos, na qual todos os filos existentes de animais já aparecem formados. O mistério para os paleontólogos é como isso aconteceu num intervalo tão curto do tempo geológico, já que os primeiros seres multicelulares do planeta haviam surgido menos de 100 milhões de anos antes -e antes disso, ao que tudo indica, apenas seres unicelulares dominaram o planeta por mais de 2 bilhões de anos.
"Esse aí é o calcanhar-de-aquiles da teoria da evolução, quando ela deixa de lidar nos livros didáticos a respeito da explosão cambriana e o que isso representa para a suficiência científica da teoria", disse Almeida Filho, sustentando que os avanços da paleontogia estão fazendo os darwinistas duvidarem do darwinismo em suas bases fundamentais.
Não é isso o que dizem os paleontólogos. A explosão cambriana é sem dúvida um dos tópicos mais quentes da biologia evolutiva e tem causado arranca-rabos monumentais entre os cientistas. Mas nenhum deles jamais pôs a evolução em questão. "O que nós discutimos de maneira ética os criacionistas manipulam", diz o paleobiólogo Reinaldo José Bertini, da Unesp de Rio Claro.
A explosão cambriana, explica Bertini, foi um aumento em dez vezes no número de espécies animais conhecidas num intervalo pequeno de tempo geológico. Mas há hipóteses para explicá-la. Na época, a Terra acabava de sair de uma glaciação que cobriu a maior parte do planeta. O fim da era do gelo liberou boa parte dos ambientes para os animais, que se diferenciaram para explorar os novos nichos ecológicos. O debate está longe de ser resolvido, mas, na academia, não envolve a invalidação do evolucionismo.
Outro exemplo de "improbidade" apontado no livro de Amabis e Martho é a ilustração da famosa série de embriões de vertebrados desenhada em 1874 pelo alemão Ernst Haeckel para ilustrar o princípio da recapitulação. Essa idéia, segundo a qual durante o desenvolvimento (ontogenia) os animais mostram traços de um ancestral comum ("recapitulam a filogenia", no dizer dos biólogos), foi usada por Darwin como confirmação de sua teoria -e até hoje não foi provada falsa.
Acontece que Haeckel, ao desenhar vários embriões de vertebrados extremamente parecidos como exemplo de recapitulação, cometeu uma série de distorções. Uma delas, admitida por ele mesmo na época, foi fazer um embrião de cachorro passar por embrião humano.
A fraude de Haeckel foi redescoberta por um grupo de pesquisadores britânicos em 1997. Em um estudo na revista "Anatomy and Embryology", eles mostraram que, na verdade, os embriões eram bem menos semelhantes entre si do que faziam supor os desenhos do alemão.
Almeida Filho citou uma reportagem publicada em 1997 na revista "Science" comentando a fraude para desqualificar Haeckel e Darwin -e, no balaio, todo o princípio da recapitulação. "Olha o aspecto ideológico", comentou. "As distorções levaram Darwin e Haeckel à crença de que os vertebrados recapitulam a filogenia durante a ontogenia. Mas os cientistas já estão carecas de saber que isso não é verdade."

Evidência suprimida
O argumento seria forte, se sobrevivesse ao escrutínio. Na mesma revista "Science", alguns meses depois, os autores do estudo original escrevem: "Nosso trabalho tem sido usado num debate televisivo nacional para atacar a teoria da evolução e sugerir que a evolução não pode explicar a embriologia. Nós discordamos fortemente. Os dados embriológicos são totalmente consistentes com a evolução darwinista".
Em uma carta à mesma publicação, o autor principal, Michael Richardson, lamenta: "Estou preocupado em descobrir que posso ter ajudado a criar um mito criacionista". Os adeptos do design não citam nem artigo, nem carta, fazendo exatamente o que criticam nos biólogos evolucionistas: suprimir evidências.
Mais tarde, questionado por alguém na platéia sobre as evidências da evolução trazidas pela biologia molecular, o coordenador do Núcleo Brasileiro de Design Inteligente afirmou que, na verdade, essa disciplina traz "evidências desfavoráveis àquilo que é preconizado como sendo fato da evolução". Mas admitiu: "Não tenho, no momento, uma literatura que eu poderia indicar". (CA)


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