São Paulo, domingo, 30 de agosto de 2009

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Dinos na arca de Noé


Livro mostra história de conflitos e harmonia entre geólogos e religiosos nos estudos sobre origem da Terra

Museu Americano de História Natural
Espécime do famoso dinossauro-ave Archaeopteryx lithographica, que fica no Museu do Jura emEichstätt, na Alemanha

REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

Ironia das ironias, dirão alguns: a "dona" de uma das evidências mais acachapantes em favor da evolução, o bonito exemplar do dinossauro-ave Archaeopteryx lithographica que ilustra este texto, é... a Igreja Católica. Para ser mais exato, o seminário de Eichstätt, financiador do Museu do Jura, na Alemanha.
A informação aparece, discretamente, na introdução do livro "Geology and Religion: A History of Harmony and Hostility" ("Geologia e Religião: Uma História de Harmonia e Hostilidade"), e dá uma pista sobre o tom da maior parte dos artigos que compõem a obra. Longe da visão simplista que vê apenas uma história interminável de religião perseguidora e ciência perseguida, a interação entre geólogos e clérigos ao longo dos séculos foi um bocado mais complicada do que esse clichê sugere.
A mostra sobre a evolução das aves patrocinada pela diocese de Eichstätt está longe de ser exemplo isolado. No começo do século 20, uma das maiores redes de sismógrafos do mundo pertencia aos jesuítas.
A Companhia de Jesus, aliás, foi a primeira instituição a estudar cientificamente a ocorrência de terremotos nas Filipinas e nos Andes. E, fora do âmbito católico, geólogos-clérigos anglicanos e luteranos foram responsáveis por demonstrar a imensa antiguidade da Terra, bem superior aos poucos milhares de anos sugeridos por uma interpretação literalista do livro do Gênesis.
O grande mérito da obra,, organizada pela alemã Martina Kölbl-Ebert, com capítulos escritos por dezenas de historiadores da ciência, é oscilar entre as perguntas mais fundamentais (como os primeiros geólogos lidaram com o literalismo bíblico?) e a biografia saborosa.

Confusão gigante
É muito difícil não se divertir, por exemplo, com a controvérsia em torno dos "gigantes de Utica" (antiga cidade romana na atual Tunísia), relatada por Gaston Godard, da Universidade Denis-Diderot, na França. Santo Agostinho, no século 4º, havia observado dentes imensos, "do tamanho de cem dentes dos nossos", e cravou: era uma prova da existência dos gigantes mencionados no Antigo Testamento.
Em 1630, um francês capturado por piratas e levado para Túnis escreveu para casa, contando que tinha achado ossos de outro gigante perto das ruínas de Utica. A carta foi parar nas mãos de Nicholas-Claude Fabri, senhor de Peiresc, um dos principais intelectuais da França. Peiresc fez o óbvio: pediu uma amostra dos dentes. Depois, deu um jeito de examinar a bocarra de um elefante numa feira. O resultado, intuído por Peiresc e confirmado por paleontólogos modernos, é que o "gigante" era só um Mammuthus africanava, elefante africano da Era do Gelo.
Mais cômica ainda é a história contada por Manuel Pinto e Filomena Amador, da Universidade de Aveiro, sobre a primeira publicação científica a abordar a controvérsia sobre a idade da Terra em língua portuguesa. A "obra-prima", assinada por Antonio Felix Castrioto e publicada no "Jornal Enciclopedico" de Lisboa em 1779, defende que o planeta tinha apenas 6.000 anos e tem como principais características a ortografia capenga ("Voltere" em vez de "Voltaire", "Pristle" no lugar de "Priestley" e, como prego no caixão, "septicos").
O que faltava em talento literário sobrava em esperteza: Castrioto parece ter escrito o artigo não por convicção, mas para limpar a própria barra com as autoridades portuguesas, as quais o acusaram de importar livros proibidos.

Mundo contingente
Diversão à parte, pode-se argumentar que o coração do livro é o artigo de Martin Rudwick, da Universidade de Cambridge, sobre o "divórcio amigável" entre a ideia bíblica do Dilúvio e as novas visões sobre catástrofes "diluvianas" que emergiram no século 19.
Rudwick mostra como a ideia de um Dilúvio universal, responsável pela presença de fósseis marinhos em montanhas ou de pedras gigantescas muito longe de suas montanhas de origem, foi sendo substituída por uma visão muito mais caótica e de "longo prazo" da evolução da Terra, pontuada por milhões de anos de catástrofes.
No entanto, Rudwick aponta que as narrativas da criação e do Dilúvio funcionaram como "andaime" conceitual para o avanço da geologia. Afinal, diz ele, a visão de uma Terra com começo e fim, pontuada por transformações de grande escala, deu peso à lógica de que os passos dessa história podem ser conhecidos. É claro que a ciência não precisa do Gênesis. Mas a interação entre aspectos tão diferentes da experiência humana pode ser não só respeitosa como também frutífera.


LIVRO - "Geology and Religion: A History of Harmony and Hostility"
M. Kölbl-Ebert (org.); The Geological Society; 357 págs.
Livros em inglês podem ser encomendados no site da Livraria Cultura (www.livrariacultura.com.br)



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