São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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ASTRÔNOMOS SUGEREM QUE A REGIÃO ONDE ESTÁ O SOL RECEBE FLUXOS DE ESTRELAS VINDAS DE OUTRAS PARTES DA GALÁXIA, EMPURRADAS PELO MOVIMENTO DE SEUS BRAÇOS ESPIRAIS

CRUZAMENTO CÓSMICO

Aura/STScI/Nasa/Associated Press
Galáxia espiral NCG 4414, muito similar à Via Láctea, flagrada pelo Telescópio Espacial Hubble em 1999


Salvador Nogueira
da Reportagem Local

O Sol é um pacato cidadão da megalópole celeste chamada Via Láctea, onde também residem outros 200 bilhões de estrelas. Em seu ritmo de sempre, típico da meia-idade (4,5 bilhões de anos bem vividos, ele não esconde), segue sua órbita ao redor do centro galáctico, numa trajetória quase circular. Sem pressa, completa uma volta a cada 230 milhões de anos, mais ou menos. Mas nem todos os astros seguem o mesmo estilo de vida. Neste momento, o Sol se encontra fazendo a travessia do que se poderia chamar de um cruzamento galáctico -e às cegas. A seu lado, estrelas rebeldes passam zunindo, em bandos, seguindo órbitas nada regulares, bastante ovais. Esse foi o quadro alarmante recém-revelado por um censo cósmico feito com mais de 6.000 estrelas próximas, realizado por um grupo de pesquisadores europeus. Segundo eles, a região que o Sol ocupa hoje, em meio a dois braços espirais da Via Láctea, é uma área convergente dos chamados fluxos dinâmicos, em que estrelas formadas em diferentes regiões e épocas se reúnem para uma jornada conjunta como se tivessem pegado carona em gigantescas marolas cósmicas que se arrastam pela galáxia. Felizmente, a galáxia ainda é um lugar majoritariamente habitado por gente de bem -os astros rebeldes respondem apenas por cerca de 20% das estrelas localizadas num raio de 1.000 anos-luz do Sol. Mas o índice de marginalidade é alto, mesmo assim, o que faz os cientistas se perguntarem: será algo inato às estrelas ou um efeito do ambiente? No momento, o grupo liderado por Benoit Famaey, do Instituto de Astronomia e Astrofísica da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica, prefere trabalhar com a segunda opção. Depois de realizarem a análise do movimento de 5.952 estrelas gigantes do tipo K e outras 739 do tipo M (as letras são designadas pelos astrônomos de acordo com a massa; K e M são as menos maciças, seguidas pelas G, o tipo do Sol), eles acham que os fluxos dinâmicos são criados pelo próprio giro dos braços da Via Láctea.

Companheiras de viagem
Embora no céu a galáxia tenha a aparência de uma grande faixa contínua que vai de um extremo ao outro do horizonte, os astrônomos sabem que a galáxia que abriga o Sistema Solar tem -como tantas outras Universo afora- o formato de uma espiral, com vários grandes braços, regiões em que há maior concentração de estrelas, gás e poeira. Mapeá-la olhando a partir do lado de dentro não é uma tarefa trivial, e até hoje os cientistas discutem quantos braços ela realmente teria. A maioria das apostas atualmente sugere quatro, com várias ramificações em cada um deles. O Sol estaria numa desses ramos, localizado entre os grandes braços de Perseus e Sagittarius. Famaey e seus colegas, num grupo que inclui o famoso caçador de planetas Michel Mayor, do Observatório de Genebra (ele foi co-autor da descoberta do primeiro planeta fora do Sistema Solar, em 1995), acreditam que o movimento desses braços, que também giram em torno do centro galáctico -a região em que habita um buraco negro gigantesco, com 2 milhões de vezes a massa do Sol- dê o empurrão necessário para que certas estrelas saiam de sua rota normal e acabem entrando nesses fluxos dinâmicos, tornando-se estrelas rebeldes. "Elas se parecem mais com companheiras de viagem casuais do que com membros de uma mesma família", diz Famaey. Para descobrir os fluxos dinâmicos em meio às estrelas da vizinhança, os cientistas usaram os dados obtidos pelo satélite Hipparcos, da ESA (Agência Espacial Européia). Durante os quatro anos de sua missão, que durou de 1989 a 1993, ele registrou a distância e o movimento de mais de 100 mil estrelas num raio de 1.000 anos-luz (um ano-luz é a distância que a luz consegue atravessar, viajando a 300 mil quilômetros por hora, em um ano, ou cerca de 9,5 trilhões de quilômetros). Pode parecer muito, mas a distância de 1.000 anos-luz é só a vizinhança mesmo -a galáxia inteira tem um diâmetro de 100 mil anos-luz (o Sistema Solar está a 26 mil anos-luz do centro galáctico, mais ou menos a metade do caminho entre a borda do disco e o buraco negro gigante).

Visão prejudicada
"Em termos gerais, o Hipparcos não "enxerga" muito longe", diz Cássio Leandro Barbosa, um astrônomo do IAG (Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas) da USP (Universidade de São Paulo) que não esteve envolvido na pesquisa. "Ele mede distâncias por paralaxes, e esse método funciona bem, mas só até uma certa distância, não muito longe." Medir distâncias por paralaxes, traduzido do cientifiquês para o português, significa calcular o quanto uma estrela está longe comparando sua posição aparente a partir de dois pontos de vista distintos. Sabendo a distância entre os dois pontos de observação, é possível fazer uma triangulação e deduzir o quão longe está o astro. É claro que, quanto mais distante estiver o objeto, maior precisa ser a distância entre os dois pontos de observação para que ela faça alguma diferença na posição aparente dele. Por isso não se pode calcular a distância de astros muito longínquos usando esse método. Os dados do Hipparcos foram combinados a outros, obtidos com o telescópio suíço do Observatório de Haute-Provence, na França, que mediram o efeito Doppler na luz dessas estrelas. Bem conhecido nas ondas sonoras, o efeito Doppler é aquele que faz com que o som de uma sirene tenha um tom diferente quando está se aproximando do observador ou se afastando dele. A mesma variação de freqüência acontece com ondas luminosas, de modo que é possível, ao medir o efeito na luz vinda das estrelas, descobrir se elas estão se afastando ou se aproximando daqui. "Ao combinar todos esses dados excepcionais, agora temos uma visão completa e tridimensional de como as estrelas próximas se movem com relação a nós", afirma Famaey. Com isso, e a identificação dos fluxos que fazem da região solar um grande cruzamento galáctico, ele e seus colegas introduziram novos elementos na tentativa de entender a dinâmica da Via Láctea. Mas é apenas o começo de um esforço muito mais amplo. Os cientistas agora já sabem que o Sol vive em meio a fluxos dinâmicos de estrelas, mas será que essa é uma condição especial? "É um fato curioso, mas pode não ser algo especial da nossa vizinhança. Como esse estudo só poderia servir mesmo para as redondezas do Sistema Solar, ele não significa necessariamente que nossa região seja mais bagunçada do que as demais", diz Barbosa. "As estrelas podem ter esse comportamento "caótico" em qualquer parte da galáxia e se movimentar "normalmente" nos braços espirais."

Debate em aberto
O estudo do grupo liderado por Famaey, publicado na última edição da revista européia "Astronomy & Astrophysics" (www.edpsciences.org/aa/), abre a discussão, mas está longe de encerrá-la.
Para isso, a ESA está trabalhando na missão sucessora do Hipparcos, o satélite Gaia. Com um alcance muito superior, ele fará um rastreamento extremamente detalhado das estrelas da Via Láctea, para os mais variados fins. Estima-se que ele vá descobrir centenas de milhares de objetos, como planetas extra-solares e estrelas abortadas, as chamadas anãs marrons. No Sistema Solar, ele deve encontrar até um milhão de asteróides e cometas. E, no total, irá mapear com precisão a posição e o movimento de cerca de 1 bilhão de estrelas -uma porcentagem considerável do total existente na galáxia.
"Ele nos dará a visão mais clara já obtida da estrutura e da evolução da Via Láctea", diz Michael Perryman, cientista que trabalhou no projeto do Hipparcos e agora atua no Gaia. Apesar de toda a grandiosidade do projeto, os resultados não são para já. O lançamento do equipamento, hoje ainda em desenvolvimento, está agendado para 2011, com um foguete russo Soyuz-Fregat.
Até lá, os cientistas continuarão trabalhando com os dados que têm e com os que podem ser coletados de telescópios terrestres, a fim de desvendar o que faz a Via Láctea funcionar do jeito que funciona. Indiferente a tudo isso, o Sol continuará navegando pelo oceano cósmico, em seu ritmo paulatino de cerca de 800 mil quilômetros por hora, em sua tediosa jornada ao redor do centro galáctico.


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