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Ciência em Dia
Mensagem para dona Maria
Marcelo Leite
colunista da Folha
Ocorreu durante a Conferência Internacional sobre Bioinformática e Biologia Computacional, encerrada quinta-feira em Angra dos Reis (RJ). Após a realização de uma mesa-redonda multidisciplinar sobre "O Futuro da Bioinformática",
um pesquisador sênior da Embrapa disse:
"Eu não tenho mensagem alguma para a
dona Maria".
A frase coroou o enredo-padrão de uma
interação do cientista com um jornalista. O
pesquisador narrava o caso para uma platéia de bioinformatas em Angra e uma mesa composta por um físico, um biólogo,
um jornalista e uma professora brasileira
da Escola Médica de Harvard (EUA). Após
passar horas explicando ao repórter o que
era e o que fazia a bioinformática, o entrevistador lhe dissera que era tudo muito
complicado para uma matéria de jornal.
"Preciso de uma mensagem que possa
ser entendida pela dona Maria", argumentou o profissional das letras. Colheu a réplica fulminante do profissional das moléculas e dos algoritmos, segundo seu próprio
relato: "Sinto muito, eu não tenho mensagem alguma para a dona Maria". Comentário entreouvido na mesa, em Angra:
"Pois deveria".
(O mais curioso é que tudo foi falado em
inglês, embora o encontro se desse no Brasil e contasse com uma maioria de brasileiros, entre três centenas de participantes.
Mas era a língua oficial da reunião, e os
oradores seguiam à risca o ritual anglófilo,
que ajuda a treinar estudantes de pós-graduação na ingrata tarefa de soar minimamente inteligentes num idioma estrangeiro.)
Foi a última intervenção da noite de terça-feira. Eram já 23h, e o salão precisava
ser liberado para a festa diária que coroava
a série de apresentações com slides PowerPoint iniciada às 8h30. A mais importante
declaração do debate, no que respeita à divulgação científica, ficou sem resposta.
A intervenção só vem ao caso porque é
muito representativa do que vários cientistas pensam a respeito. Debatia-se justamente se a bioinformática não estaria vivendo uma certa supervalorização, diante
de outras disciplinas e áreas de pesquisa,
inflada pela enorme demanda computacional gerada pela tecnociência da moda, a
genômica. A pergunta no ar era a seguinte:
Seria uma bolha fadada a romper-se, como
já havia ocorrido com as da inteligência artificial e da febre ponto.com?
Um dos argumentos em discussão era
que a pesquisa científica sempre vende
muito mais do que pode de fato entregar,
de maneira a obter mais e mais financiamento para sua atividade. Até certo ponto,
é natural e salutar. A retórica é uma arma
legítima na esfera pública.
Pesquisadores, no entanto, vivem da credibilidade que amealham ao longo de vidas
inteiras de trabalho. O mesmo vale para
programas e linhas de pesquisa, sobretudo
aqueles com aplicação tecnológica. A percepção pública de que se prometeu mais
do que o devido, ou que certos riscos ou
problemas foram escamoteados, pode ser
desastrosa para a continuidade do financiamento, ao menos no longo prazo.
Aí entra a dona Maria. Mantê-la à margem do debate público sobre os rumos e as
realizações da pesquisa científica é um erro. Decerto não é trivial incluí-la nesse universo, mas desistir de antemão só é imaginável numa sociedade fundada sobre a incapacitação do que Elio Gaspari chama de
andar de baixo.
O colunista Marcelo Leite viajou a Angra dos Reis a
convite da organização da Conferência Internacional
sobre Bioinformática e Biologia Computacional
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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