São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

Texto Anterior | Índice

Ciência em Dia

Mensagem para dona Maria

Marcelo Leite
colunista da Folha

Ocorreu durante a Conferência Internacional sobre Bioinformática e Biologia Computacional, encerrada quinta-feira em Angra dos Reis (RJ). Após a realização de uma mesa-redonda multidisciplinar sobre "O Futuro da Bioinformática", um pesquisador sênior da Embrapa disse: "Eu não tenho mensagem alguma para a dona Maria".
A frase coroou o enredo-padrão de uma interação do cientista com um jornalista. O pesquisador narrava o caso para uma platéia de bioinformatas em Angra e uma mesa composta por um físico, um biólogo, um jornalista e uma professora brasileira da Escola Médica de Harvard (EUA). Após passar horas explicando ao repórter o que era e o que fazia a bioinformática, o entrevistador lhe dissera que era tudo muito complicado para uma matéria de jornal.
"Preciso de uma mensagem que possa ser entendida pela dona Maria", argumentou o profissional das letras. Colheu a réplica fulminante do profissional das moléculas e dos algoritmos, segundo seu próprio relato: "Sinto muito, eu não tenho mensagem alguma para a dona Maria". Comentário entreouvido na mesa, em Angra: "Pois deveria".
(O mais curioso é que tudo foi falado em inglês, embora o encontro se desse no Brasil e contasse com uma maioria de brasileiros, entre três centenas de participantes. Mas era a língua oficial da reunião, e os oradores seguiam à risca o ritual anglófilo, que ajuda a treinar estudantes de pós-graduação na ingrata tarefa de soar minimamente inteligentes num idioma estrangeiro.)
Foi a última intervenção da noite de terça-feira. Eram já 23h, e o salão precisava ser liberado para a festa diária que coroava a série de apresentações com slides PowerPoint iniciada às 8h30. A mais importante declaração do debate, no que respeita à divulgação científica, ficou sem resposta.
A intervenção só vem ao caso porque é muito representativa do que vários cientistas pensam a respeito. Debatia-se justamente se a bioinformática não estaria vivendo uma certa supervalorização, diante de outras disciplinas e áreas de pesquisa, inflada pela enorme demanda computacional gerada pela tecnociência da moda, a genômica. A pergunta no ar era a seguinte: Seria uma bolha fadada a romper-se, como já havia ocorrido com as da inteligência artificial e da febre ponto.com?
Um dos argumentos em discussão era que a pesquisa científica sempre vende muito mais do que pode de fato entregar, de maneira a obter mais e mais financiamento para sua atividade. Até certo ponto, é natural e salutar. A retórica é uma arma legítima na esfera pública.
Pesquisadores, no entanto, vivem da credibilidade que amealham ao longo de vidas inteiras de trabalho. O mesmo vale para programas e linhas de pesquisa, sobretudo aqueles com aplicação tecnológica. A percepção pública de que se prometeu mais do que o devido, ou que certos riscos ou problemas foram escamoteados, pode ser desastrosa para a continuidade do financiamento, ao menos no longo prazo.
Aí entra a dona Maria. Mantê-la à margem do debate público sobre os rumos e as realizações da pesquisa científica é um erro. Decerto não é trivial incluí-la nesse universo, mas desistir de antemão só é imaginável numa sociedade fundada sobre a incapacitação do que Elio Gaspari chama de andar de baixo.


O colunista Marcelo Leite viajou a Angra dos Reis a convite da organização da Conferência Internacional sobre Bioinformática e Biologia Computacional
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


Texto Anterior: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: Ciência e Hollywood
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.