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Nina Horta

Latas, latinhas, latões

Dois irmãos simplesmente escolhem o que há de melhor no mundo inteiro em matéria de conservas

TODO MUNDO que é muito ligado em comida só fala em frescores, frescuras, peixe recém-pescado, frutas com a folha ainda grudada no galho. Muitas vezes nos esquecemos do outro lado da lua. O da despensa. O das conservas.

Pois acreditem que em duas gerações, na casa de meus pais e na minha, nunca entrou uma lata de molho de tomate. Menos por preconceito do que por falta de costume.

Pois uma crítica de restaurantes, americana, depois de um lauto almoço em Barcelona, tirou sua caderneta do bolso e resolveu arriscar um bar de tapas, o Quimet & Quimet (Poeta Cabanyes, 25; tel. 0/xx/34/93/442-3142).

A indicação vinha do seu quitandeiro predileto, e ela, como toda cronista, estava mais esfaimada por assuntos do que pela comida propriamente dita. E esse bar era um assunto controverso. Palpitante. Só servia coisas em lata.

Foi seguindo as informações e logo chegou a um barzinho que quase estourava de gente, calçada cheia. Entrou com dificuldade e deu com a bancada onde trabalhavam Joaquin e Joana Perez, herdeiros do minilugar, que já existe ali mesmo desde 1914.

Nas prateleiras, nas mesas, no mármore das bancadas, latas, latinhas e latões de todos os feitios, vidros grossos e finos, garrafas e nenhum fogão à vista. Nada, absolutamente nada, era fresco. Lulas tenras e brancas, caviar, barriga de atum, alcachofras do tamanho de uma unha, presuntos, defumados, ovas, foie gras, anchovas dessalgadas, mariscos, caviar.

Os dois irmãos simplesmente escolhem o que há de melhor no mundo inteiro em matéria de conservas e elaboram suas tapas, como grandes chefs, misturando os sabores com critério. A jornalista conseguiu se fazer entendida apontando para os pratos das pessoas sentadas em mesas e logo experimentou um pedaço de terrine de cabeça de porco, que vinha num prato acompanhada por um figo cristalizado e um marron, e fatias grossas de cogumelos porcini, italianos. Tudo salpicado com um vinagre de vinho branco, um vinagre balsâmico de Modena e água de flor de laranjeira. A terrine desmanchava na boca e os acompanhamentos lhe iam às mil maravilhas. E Joaquin e Joana, só de abridor nas mãos, abridor de lata, saca-rolhas, línguas de metal a serem puxadas à comanda. Um restaurante sem fogão, que bênção.

A crítica teve desejos de um canapé de salmão defumado com mel trufado, mas não aguentou mais, só arriscou a sobremesa. Uma torradinha redonda com coalhada cremosa por cima e chocolate belga. Uma noz cristalizada e uns salpicos de azeite de nozes e de brandy.

Nesse assunto, sou a mulher mais feliz do mundo. Tenho um amigo e concorrente de peso, o Charlô, que vai a Paris e me surpreende com os mais delicados pacotes que chegam pelo correio. Não dá para acreditar.

Tem biscoitos cor-de-rosa de Reims, sardinhas milesimés da Albert Ménés, fígados de bacalhau defumados da Dinamarca, caprichos dos deuses que são nozes "enrobés" em gianduia, "calissons d'Aix", hóstias com amêndoas, caramelos levemente salgadinhos, marrons-glacês...

É a felicidade enlatada, melhor que o Quimet & Quimet, um momento de alegre lambança, em casa, sem precisar me deslocar até Barcelona.

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