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Nina Horta

Exceção e fome

Os anos de escassez afiaram a criatividade dos coreanos e eles fazem pratos muito bons com poucos ingredientes

GOSTO MUITO de ler o que as pessoas comem em situações de exceção, de fome, de guerra. É nessa hora que a criatividade cresce absurdamente e inventamos de tudo um pouco. Tenho até uma bibliotecazinha sobre o assunto, felizmente pequena, pois ler sobre o tema é fácil, o difícil é ver o lobo batendo à porta.

No outro dia, caiu-me nas mãos o relato de um cozinheiro japonês, Fujimoto, que foi recrutado em 1982 por uma companhia coreana para ser chef de um restaurante. Em 1988, foi convidado a ser o chef pessoal de Kim Jong-il, o então herdeiro possível do seu pai, o fundador da Coreia do Norte, Kim Il-sung.

Os dois homens, patrão e cozinheiro, andavam lá pelos seus 40 anos na época e ficaram amigos ou, pelo menos, companheiros.

O que tornou a amizade possível foi a obsessão que os dois tinham por comida. "Foodies", como diriam os ingleses e americanos. O que não é mau, mas estranho num país de exceção e fome, num lugar em que havia gente comendo capim, com má nutrição crônica. E nem só comia, o senhor Kim. Tinha 10 mil garrafas de bom vinho e era o maior consumidor do melhor conhaque da Hennessy.

Conversavam sobre receitas, viam vídeos de comida juntos. O norte-coreano não era um glutão. Comia pouco. Gostava mesmo era de comida boa, tinha uma biblioteca de alguns milhares de livros de comida e um paladar tão sensível que era capaz de detectar que a cozinha havia posto gramas a mais de açúcar no arroz do sushi.

Fujimoto, para agradar o patrão, de vez em quando preparava o sashimi de um jeito que preservava os órgãos vitais do peixe, que era servido todo em arrepios e convulsões no prato. Não se falava em dinheiro quando o assunto era comida. O cozinheiro era mandado mundo afora para comprar o que havia de melhor -para o Irã e o bUzbequistão atrás do melhor caviar, trazia o porco da Dinamarca, mangas, jacas e mamões da Tailândia.

Fujimoto conheceu, é claro, Jong- un, que, apostou, seria o herdeiro. Acertou. Era parecido com o pai.

Não foi só Fujimoto a testemunha dos gostos refinados do imperador. Um oficial russo que o acompanhou à Sibéria em 2001 escreveu um livro, "Orient Express", em que conta que a cada parada da viagem, recebiam vinho, lagostas vivas e um jantar de uns 20 pratos somente tocados por Kim, somente para experimentar.

Na verdade, os norte-coreanos gostam de comer e cozinhar. Os anos de escassez afiaram a criatividade e eles fazem pratos muito bons com poucos ingredientes. Muita fome os obrigou a usar comida do mato, mexilhões pequenininhos, cogumelos de pinheiros, matinhos que viraram saladas temperadas com molho de soja e pimentas. E o mais famoso, o kimchi, conserva de repolho que acompanha todas as refeições. O problema é o arroz ou a falta dele. Kim Il-sung um dia disse que "o socialismo é arroz" e prometeu uma panela cheia a cada um.

Fujimoto, que de bobo não tinha nada, fugiu da Coreia uma vez que foi mandado ao Japão para comprar ouriços-do-mar.

E quem me contou isso? O livro "Eating Mud Crabs in Kandahar" (sem tradução no Brasil).

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