Índice geral Comida
Comida
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Nina Horta

Comer com os olhos

Algumas coisas ainda me assustam. Jamais consegui comer pão azul ou rosa, talvez em respeito à tradição

JÁ CONTEI essa história. Hospedávamos em Paraty o Ricardo Bonalume, colega da Folha e colega de meus filhos na época. Pois não é que o Bona teve um ataque de asma e precisou de carinhos especiais?

Às 11h, levei uma xícara de caldo de feijão grosso para animá-lo. O menino, que não rejeitava espécie alguma de comida, encheu a boca e cuspiu longe. Foi caldo de feijão pelos lençóis, na minha cara e na parede. Por causa da cor e da xícara, achou que era um cafezinho.

É que os olhos são os primeiros a avaliar o que vamos comer. Rapidamente formam um conceito baseado em experiências passadas.

O que assustou nosso hóspede foi o rompimento de uma expectativa diária, passar do cafezinho para o feijão na xícara.

E o que é isso, senão um dos maiores princípios da cozinha moderna de Ferran Adrià e seus seguidores? A mudança do aspecto esperado na comida. A azeitona fofa, o coelho líquido, o algodão-doce salgado, o pó de maçã e por aí vai.

Não somos mais sacudidos como o Bonalume nem temos acessos de asma ao comer espuma de cogumelos. Alguns formatos ou cores ainda me assustam. Jamais consegui comer pão azul ou rosa, talvez em respeito à tradição.

Imagino que o conhecimento cada vez mais próximo da comida de outros países venha nos acostumando a esse tipo de mudança que afeta todos os sentidos. O peixe cru demorou alguns anos e, atualmente, é preferido ao peixe frito. Ou quase.

E mesmo gente que se considera cheia de ideias novas e criativas pode embatucar em frente a um ovo quadrado, um croquete triangular, uma empadinha bolota. Passei umas seis horas numa festa mudando o formato dos croquetes, que pareciam bolinhos de arroz, e dos bolinhos de arroz, que pareciam croquetes.

De teimosia. De estranhamento. O ovo frito tenta pela paz de criança dormindo.

O choque dos ingredientes também nos alvoroça. O cunhado que come macarronada com feijão? Credo. De repente, "pasta e faggioli" entra na moda. E o marido, que pedia mexilhões com batatas fritas e todos estranhavam até que as "moules et frites" entraram nos cardápios dos bistrôs ou até que nós conhecêssemos a Bélgica? E quem se lembra do purê de batata azul que guarnecia carnes? Ninguém comia. Vem de longe!

Há os mais afoitos, mas não é fácil gostar por antecipação de um sorvete de alho, parmesão ou de barriga de porco. Juro que atualmente tenho uma preguiça do cão de sair do costumeiro. Um largo costumeiro, é claro, mas que não me ponha de cabeça para baixo.

Quem se acostumará primeiro com a sobremesa de galinha e a entrada de suspirinhos verdes de capim norueguês? Quando seremos capazes de comprar com prazer no supermercado o chocolate em pó salgado e apimentado? Quando não seremos tentados pelo último hambúrguer da fast food mundial que ataca nossos olhos na TV?

E por que conseguíamos beber um coelho no El Bulli e jamais num botequim da esquina? Quanto o ambiente influi no nosso paladar?

PS - Leitores sabidos, também sei que o El Bulli fechou, é só exemplo.

ninahorta@uol.com.br

FOLHA.com
Leia o blog da colunista
ninahorta.blogfolha.uol.com.br

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.