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Histórias da floresta

Expedição gastronômica desbrava pequenos produtores da Amazônia e conhece de perto como se faz farinha, tucupi e goma

ENVIADA ESPECIAL AO AMAZONAS

Na expedição gastronômica ao Estado do Amazonas que a Folha acompanhou por sete dias, no mês passado, foi no sítio de seu Raimundo Moura, 56, na zona rural de Manaus, a primeira parada.

De uma terra encharcada pelas chuvas ele tira jambu, chicória, urucum, alfavaca. Tudo orgânico. Faz de uma planta, a vinagreira macerada, um bactericida. Da urtiga, um "espanta-lagartas". E vende parte de sua produção no pátio de uma igreja.

A expedição encontra a mesma relação visceral com o que vem da terra, que serve de alimento, remédio e ganha-pão, na visita às índias Mirion e Yossokamo, da tribo Tukana Dessana, às margens do rio Negro. De pés descalços, as duas trabalham na coleta de maniwaras -as formigas de cabeça e abdômen carnudos e avermelhados.

Para tirá-las dos formigueiros, elas usam uma fibra, chamada arumã. Depois de armazenadas em uma cesta artesanal, as formigas são lavadas em água e mergulhadas numa panela de barro com tucupi preto, o suco extraído da mandioca-brava reduzido no calor de lenha.

As maniwaras são comidas assim, acompanhadas de um pedaço de beiju, a goma de tapioca feita no tacho quente, e pimentas da terra. O sabor que prevalece é o do tucupi. Das formigas, dá para sentir a textura das patinhas.

MANDIOCA-BRAVA

Logo ali adiante seu Manoel Gomes, 63, da comunidade Bela Vista, não toma "remédio de médico", nunca tomou. Quando "o corpo rói", ele diz que mistura banha de cobra à raiz de açaí para curar dores disso e daquilo.

Ele colhe mandioca-brava na roça atrás de casa, perto da onde ficam os porcos.

É a filha quem descasca, rala e prensa a mandioca. Parte dela é colocada para fermentar em água e vira a farinha puba. Por vezes, é usada a água da chuva -da mesma "fonte" que a família recolhe para beber e banhar-se.

A mandioca ralada fresca vai para o tacho, misturada à farinha puba. Seu Manoel mexe de lá pra cá na superfície de ferro, base de barro, lenha a queimar embaixo, até obter a farinha d'água, crocante e amarelinha de tudo.

Num prato fundo, a farinha é misturada ao jaraqui, um peixe pequeno, popular na região, eviscerado, antes de ir para a grelha de lenha.

PIRARUCU SUSTENTÁVEL

Luiz Gonzaga, 47, preside a comunidade pesqueira de Maraã -município pobre, com mais cachorro do que gente, que tem uma churrascaria de mesa de madeira em terra batida onde se come em prato fundo carnes grelhadas em braseiro portátil.

Gonzaga passa adiante os ensinamentos do manejo do pirarucu, o grande peixe de escamas de água doce, de cara pré-histórica e carne com gordura entremeada de maciez-de-grudar-na-memória.

Sua missão é educar os pescadores para evitar que o pirarucu seja ameaçado, mais uma vez, de extinção. O peixe, que já teve pesca proibida, agora é submetido à exploração sustentável -é permitido extrair dos rios 30% dos pirarucus adultos. Eles são pescados em canoas que comportam dois pescadores.

O colega, Paulo Gonçalves, faz a contagem dos peixes há dez anos. Com ela, é possível saber quantos exemplares podem ser capturados de outubro a novembro.

TAPIOCA E TUCUPI

O lago do Janauacá fica num canto que traz um pouco da aura evocada por Guimarães Rosa em "A Terceira Margem do Rio". Uma casa próxima ao rio, a pequena canoa "para durar anos", o cacho de banana, a água que não para, "de longas beiras".

Desses lugares que se alcança depois de uma noite no barco, a dormir em redes, ao relento, no silêncio absoluto do baixo Solimões.

Foi a bordo de um barco desses que o chef Fabio Silva, da empresa de turismo e gastronomia Amigos da Floresta, preparou um jantar.

Os legumes ao vapor representavam o que os peixes comem nos igapós, as florestas inundadas. O tambaqui foi assado, submerso em azeite. O arroz ganhou outra textura ao ser combinado com queijo de coalho de leite cru.

Ao amanhecer, uma visita à vila de Janauacá. É ali que Zé Maruoca e sua família fazem goma de tapioca e tucupi, de mandioca de roçado próprio -também compram de fornecedores vizinhos para complementar a produção.

Neste ano, com a cheia histórica, teve de colher as mandiocas mais jovens, para não perdê-las. Na seca, a produção é melhor: as raízes envelhecem mais, ficam maiores e ganham qualidade.

No almoço, de volta ao barco, uma infindável produção de foto e vídeo. E o chef Felipe Schaedler, 26, do restaurante O Banzeiro, em Manaus, preparou a "trilogia de pirarucu". O peixe foi feito em três versões: fresco (um corte do lombo em creme de leite de coco e castanha), defumado (na grelha com azeite, servido com banana-pacovã frita) e seco, que, depois de dessalgado, é assado no forno com azeite e selado na frigideira, servido com farofa.

NA CAPITAL

Manaus. Uma cidade com um mercado sem fim, bananas, melancias, peixes, farinhas, castanhas.

É ali na feira da Manaus Moderna, num cimentado entre uma maromba e outra -esses estrados que permitem a passagem em época de cheia-, que um fulano de cujo nome não me lembro, baixinho e gorducho, estava fazendo tapiocas. Uma gostosura: ele acomoda a goma, o queijo de coalho e as lascas de tucumã fresco na frigideira, em pleno café da manhã.

Na mesma cidade, conheci Maria do Céu Athayde, aquela senhora de nome sabido, que fez fama divulgando a cozinha amazonense. Ela apresentou à equipe duas receitas de peixes locais, o matrinxã assado, e o aruanã, empanado e frito.

Insistiu para preparar uma marmita, para ser devorada no aeroporto. Mas o assunto foi resolvido ali de pé mesmo, entre uma garfada e outra.

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Rio Negro

De voadeira, a viagem segue pelo rio Negro, rumo ao oeste de Manaus, para visitar os índios tukana dessana. Ali, a equipe acompanha a captura de formigas, conhece o tucupi preto e vê o beiju sendo preparado no tacho

Rio Jaragui

Mais acima, no rio Jaraqui, visita a comunidade Vista Bela, onde conhece a farinha d'água e prova bombons de cupuaçu

Transporte

Em Maraã, o transporte foi de mototáxi. Uma turma de taxistas com a equipe de cinco pessoas nas garupas

Recolham os pirarucus!

Nessa época do ano não é permitido, por lei, pescar pirarucu, o peixe mais valorizado da região. Pois alguns exemplares estavam expostos no Mercado da Manaus Moderna e, quando a equipe passou, gravando e tirando fotos, o peixeiro retirou todos os pirarucus dali, num instante

Em Manaus

Na zona rural, parada para visitar um produtor de ingredientes orgânicos como biribá, vinagreira, jambu, chicória, alfavaca, urucum...

Papo de jacaré

Na voadeira, indo para Maraã, à noite, a equipe só queria saber de topar com um jacaré. E aconteceu. À luz fraquinha, acesa na ponta do barco, surge o bicho, num movimento de águas de dar emoção. Rápido, rápido!

Meu bloco, meu bloco!

Em Alvarães, ao pular do barco para a voadeira, o bloquinho, com todas as anotações da viagem, caiu no rio. "Meu bloco, meu bloco!" Ele foi salvo por Fabio Silva, nosso guia, chef de cozinha e agora meu herói, que se jogou no barco, de barriga, e enfiou o braço todinho na água para resgatá-lo

Tecla Sap

"Machucar a mandioca"

Amassar a mandioca com as mãos

"Quando o corpo rói"

Quando o corpo dói

(LUIZA FECAROTTA)

A jornalista LUIZA FECAROTTA viajou a convite do Festival de Cultura e Gastronomia de Tiradentes

FOLHA.com

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