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Nina Horta

Os netos de Ferran

Tem galinha assada com batata palha e um abacaxi em rodelas com fio de melado nada desprezíveis

Aha, eu sei. Os leitores querem se agarrar à comida como se fosse o último refúgio. Adoram lembranças, quisera eu ser sempre a memorialista que sabe procurar no passado aquela nota que toca a todos. Mas, pensando bem, temos saudade é do tempo em que éramos felizes e seguros nas casas dos pais, a mãe de avental, o pai chegando do trabalho, e nós contentes da vida esperando o jantar com sopa.
Só tenho uma palavra de consolo. Nossos filhos e netos vão se babar de saudade do hambúrguer que fazíamos, o Miojo súbito vai brincar na lembrança deles como refúgio bendito no dia de chuva, as panquecas nunca mais serão iguais às nossas, e a pipoca de micro da vovó, então! Não tinha aquele cheiro forte e ela deixava muito mais tempo, quase até queimar, e as mais queimadinhas desmanchavam na boca.
Qual Arca do Gosto qual nada, nossa arca não geme por comidas de outros tempos, arde pela nossa infância. Estou falando nisso porque chegou um livro em papel, ainda não há digital, com as refeições de todo dia do staff do Ferran Adrià. O livro chama-se "The Family Meal" (Phaidon). Deu vontade de saber de que teriam saudade os netos dele. Vou escolher um menu ao léu.
Hum (tossinha nervosa), os
empregados dele comiam bem pra burro, felizes de nós se tivéssemos a sorte de ter avós com um repertório tão variado.
Por exemplo -grão de bico com espinafre e ovos; barriga de porco com molho teriyaki; batata-doce com mel e creme. Pularíamos a barriga de porco, com certeza.
O primeiro cardápio é salada César, depois um cheeseburger com batata frita e de sobremesa uma fatia de bolo de Santiago. (Dessa com certeza o neto dele vai se lembrar).
Outro menu bom é a polenta com gratin de parmesão, sardinhas fritas com crosta de gergelim e salada de cenoura. Sobremesa, manga com iogurte de chocolate branco.
É, acho que os netos do Ferran vão se ferrar se ele se puser a variar assim todos os dias, pois é difícil se lembrar de comida muito variada, mas tem uma galinha assada com batata palha e, de sobremesa, abacaxi em rodelas com um fio de melado por cima nada desprezíveis.
O único problema são os ingredientes mais usados. Eu me lembro do aperto de minha mãe quando meu pai introduziu em casa um faz-tudo espanhol que almoçaria lá. Ao dar de cara com a primeira refeição, se recusou a comer. Onde estavam as codornas e o grão-de-bico?
É isso, temos que substituir. No lugar da codorna, uma boa franguinha caipira e grão-de-bico tem até em lata. E pasta bolonhesa com penne, omelete com fritas prontas...
E um prato de dois ovos fritos com aspargos. Nós nos esquecemos dos aspargos, botamos milho verde ou uma forma de arroz com brócolis.
E batatas recheadas (essa é muito fácil, nenhum neto se esquecerá) com dois molhos diferentes. E uma melancia em calda, coada, com pó de bala de menta por cima. (É só
esmigalhar qualquer bala de hortelã com o martelo.)
Pois é, conformem-se. Não se
fazem mais comidas nem avós como antigamente. Juro a vocês que os netos chorarão no futuro por aquela taça de brigadeiro mole com Bis estraçalhado. Juro.

ninahorta@uol.com.br

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