São Paulo, quinta-feira, 06 de outubro de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

FOGO ALTO

A visão de quem cozinha

LOURDES HERNÁNDEZ


Uma cozinha que não viaja


Como contar que vivo congelando chiles frescos que viajaram mais de 18 horas num plástico?

Num mundo onde as ideias de ética e sustentabilidade estão intimamente ligadas aos fazeres humanos, a gastronomia não podia ficar de fora. Acredito em muitos desses pensamentos, embora circulem quase como entidades abstratas. Acho importante comer com responsabilidade (ia até fazer uma piada, mas estou no meu momento politicamente correto). Acabou o momento.
Melhor vocês já irem sabendo que basta alguém começar a falar sobre os ingredientes de seu cardápio, todos fresquinhos, quase falantes, produzidos na própria janela de seu restaurante, peixes frescos que se reproduzem como coelhos no aquário do salão, que eu começo a sofrer.
Como explicar que minha culinária ou viaja mal ou não viaja? Eu, que já tirei sarro da minha sobrinha que mora na França e sempre viaja carregada de potes de plástico com gosto de plástico, logo que aqui cheguei fiz de tudo para reproduzir, assim meio tortos, alguns dos sabores da cozinha mexicana. Como contar que vivo congelando chiles frescos que viajaram mais de 18 horas embrulhados num plástico que já lacerou e suou suas partes mais íntimas?
Até fiz neles respiração boca a boca (meus lábios queimam), mas só um milagre os salvaria. E aí vou eu, sopro neles, acendo uma vela, faço promessa e minha vida é um dramalhão. Tenho medo de pensar na minha cara de pau quando alguém me pergunta: "O que tem nesse molho?". "Chile fresquíssimo."
Acender um fogão é acender uma história de tradições e às vezes acho que eu a perverto prazerosamente com essas minhas eternas ganas de fabular. Hoje parece natural comer um taco de carnitas (o porco não é americano, chegou pelos espanhóis) ou uma manga de Manila (o nome já delata a origem). O México, como outros países americanos, é uma grande panela em ebulição. E são todas essas histórias descomunais, temperos de nossa antropofagia, que me deixam curiosa e faminta.
Os conquistadores nos qualificaram por séculos de terra de demônios! Gosto de fazer jus ao apelido. Pode atirar a primeira pedra.

LOURDES HERNÁNDEZ foi autora da coluna "La Cocinera Atrevida" em jornais mexicanos; hoje oferece jantares em casa, em São Paulo, apenas para convidados


Texto Anterior: O faminto - André Barcinski: Deixem o curau em paz!
Próximo Texto: Doce de criança
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.